quarta-feira, novembro 23, 2005

Macabro



Frio. Água a molhar-lhe a face, a roupa húmida de chuva e de suor. Da boca sai o bafo branco que embacia o ar. Ele vai andando, cambaleando em direcção ao escuro. No canto uma luz ilumina amarela. Ela já o espera, esfrega as mãos de dentro do seu casaco. Ele vai ao seu encontro calcando os passos para se anunciar. Ela olha-o esperançada do encontro. A sua face reprime um sorriso por saber triste o motivo da sua vinda. Ele reprime uma lágrima para evitar que o momento se torne já triste enquanto as suas mãos correm o bolso procurando o frio do metal. Encontram-se. Um beijo frio e amargo desprende-se das bocas e ambos esboçam um sorriso ácido. Ele por saber a verdade, ela por a temer. Ela fala, saem-lhe da boca doçuras já desaparecidas retratos quentes de uma vida tão longínqua. Ele engrossa a cara e enquanto uma lágrima lhe risca a face esquerda, ele sibila "Desculpa" tão lentamente que o coração dela pára por momentos. O inicio de um porquê começa a sair-lhe da garganta quando sente o frio de uma ponta fina a rasgá-la no peito. Ele fechando os olhos para não ser testemunha do seu crime, enfia o punhal até que ela pare. Ela fica ainda a olhar para as pálpebras cerradas dele procurando misericórdia. A mão dele vai ficando quente com o que dela se esvai. Ele abraça-se então num último acto de amor e só larga quando todo o peso dela lhe fica nos braços. Ele desce-a lentamente e estende-a no chão como tantas vezes fez. Deixa-lhe nos lábios o beijo de sempre e afasta-se. Ainda à luz amarela do candeeiro olha as mãos. Um vómito. Cor. Vermelho vivo arde-lhe nas mãos. Num frenesim ele limpa as mãos a tudo o que encontra espalhando assim o fogo pelas roupas todas. Toda ela presente sobre ele de uma forma que nunca esteve. Lentamente mas com a respiração ainda noutro ritmo, tira um cigarro e enfuma-se tentando purificar a alma. Quando finalmente o vermelho do cigarro desaparece ele tira o punhal do coração dela e vê-a escorrer pela lâmina luzidia. Com o coração ainda a bater desritmado ele agarra no punhal e desenha uma linha a separar os braços das mãos. E sentindo a vida a escorrer-se dele aproxima-se do chão e olha-a com a vista já turvada. Assim é que tinha de ser. "Vamos ficar separados para sempre mas o que nos une ficará sempre marcado a vermelho" e ao acabar a frase ele fecha os olhos e
afasta-se voando.

2 Comentários:

Blogger SA. disse...

Ja reparaste bem naquilo que escreves? Como poderias nao ser o meu mestre? eu sei que não gostas, mas n podes fazer nada porque o vais ser sempre...
gosto muito de ti

5:58 da tarde  
Blogger styska disse...

já não tenho mais palavras para comentar os teus textos... mais do que escrever bem, acho que tens um dom. é delicioso ler-te! :)
*******

1:33 da tarde  

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