segunda-feira, outubro 17, 2005

Diálogo Apaixonado nº7

Pela janela entra o cheiro bafiento da trovoada e o cinzento de um céu melancólico. Agacho-me perto de um baú lacrado pelo pó, e exponho-lhe o ventre cheio de discos. Tiro um e ponho etre a agulha e o prato. O som de anos rebobinado para trás enquanto músicas extintas pelo tempo se espalham à minha volta. A nostalgia percorre-me e encho-me de dor. Nunca traz nada de bom e por isso me enoja. Nostalgia de algo bom é saudade insaciável, nostalgia de algo mau é culpa sem remédio.
Sento no sofá, puxo um copo e agarro-me a ele enquanto fantasmas dançam à minha volta. Não lhes tenho medo, não me assustam nem me fazem chorar. Já não. As lágrimas que lhes mostrei há tempos fizeram-me crescer, fizeram-me grande à beira deles. Deixo os dançar por isso mesmo, porque já não os temo, não mais me trazem dor. Fico feliz por isso, não vou mentir para ser correcto, porque a meus olhos deixaria de o ser. O problema é que os fantasmas te encontraram a ti. Não o sei por certeza mas vejo-os muitas vezes dançar contigo e aí o coração amargura-se-me e volto a ser pequeno. Como pude eu deixar que te levassem? Como posso eu vê-los a dançar contigo? Sim estão lá. Vejo-os daqui. E daqui choro amedrontado.
Disseste que não me querias ver chorar.Não me queres ver sofrer por ti. Não queres sofrer comigo. O sofrimento doi. A dor é pesada para ti. Para mim já deixou de o ser. Acompanha-me como o traço continuo da minha estrada para me guiar. E quando a calco, tentando transpor o que não o deve ser, ela grita-me e traz-me o sofrimento. Aprendi que ele me ajuda a conduzir, que é ele quem me faz perceber que ao fim da curva tenho que virar à direita. Se não sofrer como saberei o que fazer.
Se por ti não chorasse, se por ti não sofresse como saberia eu que não me és indiferente? Com cada lágrima crio-te em mim e o apertar da garganta avisa-me que és importante para mim. Não chega sentir-me bem quando dizes que me adoras, preciso de sentir-me bem depois do sofrimento passar, preciso saber que por muito devastador que seja o que por aqui passe tu continues de pedra e cal agarrada ao meu centro de vida.
Limpo os dois traços que me dividem a cara em 3 com um sorriso quente. Sinto o sol a espreitar por entre as nuvens o calor da trovoada. A cara ilumina-se-me e o amarelo quente seca-me a face. Pego num livro e começo a lê-lo enquanto tu não chegas. Mas eu sei que vens, e se os fantasmas me fizerem chorar conto contigo para os mandares embora e me secares de novo as lágrimas.

1 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Está lindo.. tocou-me como raramente os textos me tocam...
Só tu mm pa conseguires escrever assim

beijinho

mikinha

10:44 da tarde  

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