quinta-feira, novembro 06, 2008

Wise Up

Os olhos abriram-se num esforço que quebrou pestanas. Ela sentiu uma agitação imensa no seu quarto banhado por uma estranha claridade. O quarto parecia pintado de luz e os seus olhos queixavam-se disso mesmo. Agradeceu mentalmente à sombra do que parecia a sua mãe que se encavalitava junto á sua face. Ela parecia sorrir mas com uma expressão triste. Ela fez um esforço para sorrir mas a sua cara parecia dormente. Há quanto tempo estaria a dormir?
-Doçura? Consegues ouvir a mãe?
Tentou falar mas tudo o que lhe saiu foi um gemido que se parecia levemente com um sim. Como uma pequena bala esbatida a sua palavra deitou a mãe por terra e soou no ar o intenso soluçar de um choro. Que teria acontecido para a mãe estar a chorar? Os seus avós haviam morrido muito antes de Kate nascer. E pareciam ter levado as lágrimas da filha com eles. A mãe raramente chorava e o intenso movimento da cabeça dela sobre o colo de Kate parecia declarar o momento como solene.
O seu pai erguia-se solene contíguo á janela como a definir uma margem. A sua cara antecipava algum sofrimento e mais alguma coisa que Kate não conseguiu descortinar por entre a névoa que ainda lhe habitava as pupilas. Kate semi-cerrou os olhos para ver melhor a última memória antes de dormir. Festa. Tinha saído. Devia ser domingo porque a última lembrança que tinha era de uma madrugada bem bedida e dançanda na discoteca acompanhada das suas amigas. Kate ainda não tinha idade para beber nos seus menores 19 anos mas a maquilhagem e a sua beleza natural ajudavam a que ninguém lhe pedisse a falsa identificação que levava sempre consigo. Lembrava-se de estilhaçar um copo de vodka com sumo de maracujá no chão de azulejos pretos. Azulejos brancos pareciam forrar-lhe o quarto com toda a luz que as paredes emanavam. Viu o pai baixar a cabeça e abandonar o quarto de telemóvel na mão. Ficou admirada ao perceber que o pai estava em casa. Ao domingo de manhã ia sempre caçar com os amigos. Não que ela aprovasse tal actividade mas estranhou a presença do pai a um domingo.
Fez um esforço para se levantar mas ao mesmo tempo o conforto do quentinho da cama banhada pelo sol rapidamente a remeteu a um novo fechar de olhos encetando um novo sono.
Quando acordou de novo o sol já ia baixo. Os olhos abriram-se com novo custo apesar de a luz já cair lenta sobre o quarto. Agora que a luz não a enganava viu que as paredes cobriam-se com azulejos brancos havia uma serie de aparelhos à sua volta. Aos seu pés numa cadeira onde a mãe dormia sobre as suas mãos alvas apoiadas nos joelhos. O quarto guardava uma calma confirmada pelo enorme chorão que afagava o vento na rua.
Estava no hospital. Agora percebia as lágrimas da mãe. Reclamando pesadamente a sua cabeça funcionava agora ao ritmo normal. Tentou perceber porque estava ali. A sua última memória era a da discoteca onde todas as semanas espalhava a dança e a alegria com as suas amigas. Teria bebido de tal forma que precisara de ser desintoxicada? Provavelmente. Os pais não a iam deixar sair mais este mês.
«Bummer!» pensou Kate. Levou a mão à cabeça para coçar a intensa comichão que a atormentava. Havia uma ligadura na cabeça. «Uma ligadura na cabeça?» Provavelmente tinha batido com a cabeça aquando da sua inconsciência. Já tinha visto Sarah torcer um pé da mesma forma. Procurou os seus tornozelos para se certificar que estavam de boa saúde mas a cabeça rapidamente impediu o seu desejo respondendo com latejar à sua tentativa de alcançar alguma coisa abaixo da cintura. Ressaca. Kate conhecia bem os sintomas de uma boa ressaca. Mas a cor do por do sol parecia avisa-la de que o aperto no peito era mais que um mero sintoma.
-Mãe? chamou Kate sentindo uma ponta de egoísmo ao chamar a mãe de um merecido sono. Devia ter passado a noite em branco.
- Kate? Estás bem doçura?
-Dói-me a cabeça. - respondeu Kate apercebendo-se da lixa que se tinha tornado a sua garganta.
A mão levantou-se e sentou-se de lado na cama dela. Duas lágrimas seguiam a alta velocidade pela cara da sua mãe a baixo.
- Querida tu tiveste um acidente. - A cara de Kate abriu-se o possível com a surpresa de um novo dado algo chocante.
-Acidente?
-Tu estavas a conduzir...- a voz da mãe desfez em mais lágrimas de cristal que lhe iam arrastando o que ainda restava da maquilhagem - e tinhas bebido...
O coração de Kate acelerou a fundo abastecido com o que a mãe lhe dizia. «Merda! Um mês de castigo.»
- Doçura, tu... - de novo a interferência aguda na voz - tu não vais poder...
«Sair durante os próximos 20 anos» apontou mentalmente Kate
-Tu não vais poder andar Kate.
Uma bomba explodiu no centro do seu peito naquele instante. As suas mãos perderam as forças naquele instante. Toda ela perdeu as forças. O sol veio de novo clarear todo o quarto e as suas pálpebras não tiveram outro remédio senão fecharem-se.
Três dias depois Kate sentava-se no sofá da sala com a mãe e a lareira a crepitar. A mãe agarrava-lhe as mãos e conversava num tom calmo com ela. O pai ainda não lhe falava nem falaria por um ano. Kate baixou a cabeça e deixou baixar um mar dos olhos durante umas horas. Nascia ali o mar que a afogaria durante todas as noites durante anos. A mãe acabava de lhe dizer que devido ao álcool que carregava tinha conduzido do lado errado da estrada tendo embatido frontalmente num monovolume que levava uma mãe e uma filha de volta a casa. O mar nunca secaria.

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3 Comentários:

Blogger Gui disse...

deixo aqui as minhas palavras que são minhas e valem o que valem, deixo-as aqui uma vez mais para te dizer que a forma como tu escreves mexe sempre, de uma forma ou de outra comigo.

Páras de retratar aqui de uma forma tão espectacularmente perfeita todos os meus mais profundos medos?

(se fosse agora escrever aqui tudo sobre o que este Wise Up me fez pensar, escrevia um post e não um comentário...)

Rei.

8:31 da tarde  
Blogger styska disse...

não, não vi logo.
:)*

1:20 da tarde  
Blogger Liliana Bárcia disse...

ah é bom ler-te, mesmo que de um modo mais pesado.

adorei!

bjs.

3:01 da manhã  

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