quarta-feira, maio 28, 2008

Take Five!

O fumo dos nossos cigarros dava-nos uma aura vermelha em conjunto com as luzes a que chamávamos "devil eyes" que nos olhavam de cima do palco. O meu trompete assim como a minha voz tinha perdido a força e a vontade de tocar apesar de o Louie me ir atirando "Yeah's" por trás do piano. Os meus olhos estavam fixos numa mesa onde um homem muito gordo se fazia acompanhar de dois relativamente magros. O mais gordo segurava na mão um charuto que largava no ar uma coluna de fumo branca. A minha coluna parecia identificar-se com a de fumo e abanava a cada oscilação de ar. E isso começava-se a notar no trompete.
Tocávamos num pardieiro chamado Hot Fyve que tinha trocado o i pelo y não por ser mais hip mas porque o nome original já tinha sido ocupado. O dono, Bobby, sentava-se atrás do balcão com o seu mau humor e mandava a sua namorada Pearl às mesas onde ainda respirava alguém. Mesmo com o seu mau feitio sempre a desfazer-lhe a cara os nossos cheques tinham cobertura ao fim do mês ao contrário de grandes estrelas de grandes clubes nocturnos. Era por isso que as notas que saiam do palco ainda faziam por sair direitas. O Joe arrastava-se pela bateria às vezes, culpa da idade e das drogas. Já pouco via. Os óculos deixava-os no camarim em detrimento da estética. Os olhos deixava-os por vezes em casa para encher o nariz de crack. Mas as suas baquetas iam explodindo ritmadas contra a bateria. O meu pé acompanhava-lhe o ritmo em dias normais. Hoje o Big Paulie era quem carregava no chão.E a mim parecia-me mais que arrastava o pé contra a arena como um touro enraivecido. Talvez fosse por isso que nas suas costas lhe chamassem Big Bull. Eu hoje arrastava-me pelo palco. Os dedos quando não carregavam contra o trompete, tremiam dedilhando um guitarra no ar. No canto o Jack dedilhava o contrabaixo com mais atenção ao chão do que ao mundo real. O Jack nunca precisou de inspirar nada para viajar na sua mente. Conheço-lhe as viagens desde que jogavamos baseball no descampado junto ao rio. Era dele que esperava mais na música. Uma carreira ao lado daqueles que enchem clubes em New Orleans. Mas a guerra desligou-lhe a ambição e passou a tocar com o mesmo empenho que comia ou que respirava. Na mesa do Big Paulie pareciam so respirar fumo. O ar parecia tornar-se irrespiravel tanto que eu precisava de um cigarro. Mas não queria de todo que o Louie falasse. O mais animado dos 5. A vida para ele era um prémio. As suas habilidades no piano eram menores que qualquer uma das nossas . Ainda assim era ele que o tocava e que liderava a banda. Podia haver quem pensasse que era por ser o único branco da banda, mas na verdade devia por ser o que mais se divertia na música. Quem parecia estar a divertir-se com a música era o gordo e os dois amigos. Há algum tempo que a música que tocava em deixara de divertir assim como a vida que tocava. Tudo se tornara mais pesado. E os pesos pareciam aumentar de tamanho a cada dia. O que eu queria era aumentar o tempo neste instante exacto. Expremia-o a cada nota neste último standart slow antes dos habituais cinco. A bateria parecia rufar um toque de funeral e o contrabaixo acompanhava-lhe o tom fúnebre. Deixamo-nos escorrer todos pela música até o meu trompete soar mais agudo. Então o Paulie quase que praguejou "Take Five" que tantas vezes desejei mas em que o meu coração quase parou.

Baixei-me para pousar o trompete e quando ergui a cabeça já um dos armários que acompanhava o Big Paulie acenava para uma cadeira à sua frente. Tirei um cigarro da mala do trompete e dirigi-me à mesa onde os devil eyes pareciam brilhar com mais intensidade. Sentei-me e procurei o isqueiro no bolso.

-Não vais precisar disto- disse o bizonte da direita enquanto me puxava o cigarro da boca.

- Então Tony que tal vai a vida? - disse o grande chefe por trás da sua enorme barriga que lhe toldava a voz.

- A mesma merda de sempre- respondi ainda irritado por não ter um cigarro entre dentes.

-Mas vai melhorar, não te preocupes Tony- disse ele num tom tão clemente que até fui capaz de respirar fundo- Desde que tenhas os meus 5 mil.

Então o último sopro que ainda habitava os meus pulmões escapou-se por entre os dentes que se apertavam uns contra os outros.

-Pois Mr.Paulie, acerca disso, é que o televisor avariou e tivemos que comprar outro, sabe que os miudos são loucos por aquele quadradinho, e o meu Donald não sabe viver sem a televisão.

-E sem pai?- indagou o Big Bull com toda a frieza de um assassino. O silêncio parecia ornamentar o olhar com que ele me olhava por entre o fumo do seu charuto.

-Let's go!

A voz do Louie para me salvar.

-Bem, Mr. Paulie divirta-se na segunda parte - disse a minha boca sozinha enquanto me levantava.

-Sem dúvida que sim. - respondeu-me ele num sorriso demasiado bom para quem não era um grande fã de jazz.

Pedi ao Paulie que tocassem uma sem mim e comecei a encher o peito de fumo. Ninguém me questionou. Fechei os olhos e ouvi como se fosse aquela a primeira vez que ouvia aquela musica. Respirei fundo. Abri os olhos e magicamente o Big Paulie tinha desparecido bem como a sua escolta. Fechei os olhos de novo e tirei mais uma passa do cigarro. Fora só mais uma ameaça. A quinta desde que tinha passado o prazo de devolução do dinheiro que me emprestara. O meu cigarro acompanhava o compasso da música enquanto na minha cabeça surgiam as notas. Visualizei toda a partitura. Era uma música alegre. Bastante alegre mas com um fim amargo. Hoje havia sido ao contrario. Uma melodia amrga mas com um fim mais alegre. O meu sapato batia já contra o palco. E recusei-me a abrir os olhos para mais uma passa. Até que ouvi um "não" seguido de uma correria pela madeira. Abri os olhos e vi o Bobby empurrar a Pearl para o chão. Só depois foquei o olhar na escuridão por trás do Bobby. Quase imediatamente ouvi a revoada de estrondos e senti como se levasse vários murros na zona do estômago. Cai quase imediatamente. Estilhaços do contra baixo voavam sobre mim enquanto ouvia os pratos da bateria chiarem. O nevoeiro começa a apoderar-se de mim. Vejo Louie deitado sobre o piano, na bateria já não mora ninguém e o Jack tosse junto de mim. Os seus olhos são calmos. Pearl grita lá à frente junto ao balcão. Há cinco corpos no chão. O meu trompete ergue-se a meu lado. Sopro nele. O último sopro. Já não é nada. Já não sou nada.

*concebido e escrito com a ajuda sonora da The Postcard Brass Band

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2 Comentários:

Blogger styska disse...

como é que se chamam aquelas pessoas que com simples palavras conseguem transportar-nos para outros mundos e, por momentos, viver outras vidas?

6:15 da tarde  
Blogger Gui disse...

Impressionante. Eu vi o bar à minha frente e vi o armário e o bisonte e vi o Big Paulie a esboçar um sorriso no meio do fumo do charuto. Eu vi tudo e senti tudo. E depois vem aqui a menina de cima e diz tudo aquilo que eu estou a dizer em meia duzia de palavras.

Eu tenho de dizer como sempre, que tu me deixas impressionada e que ultimamente tenho andado a pensar muito nesta parte de ti e um dia destes, quando me apetecer, ainda havemos de falar sobre o que eu ando por aqui a pensar.

9:10 da tarde  

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