quarta-feira, março 12, 2008

Despicable

Sento-me pela manhã na mesa recatada de um café sossegado numa rua com pouco movimento. Espero pelo meu café, bocejo o meu cigarro e no fim mando calmamente pôr tudo na conta que pagarei no final da semana. Sou um homem de hábitos. Levanto-me sempre à mesma hora, vejo sempre o mesmo canal durante a torrada que me sirvo ao pequeno-almoço. Faço o chá, preto, sempre da mesma forma, no mesmo recipiente, colocando o saquinho dentro da agua quente sempre mesmo tempo. Tenho um problema com a desorganização.
É por isso que este fulano me faz ferver o sistema nervoso devagarinho.
Entra sempre a horas diferentes naquele café que é só meu. Há dias em que não vem ou nem se chega a encontrar comigo. O seu aspecto parece mais caótico a cada dia que a semana vai enchendo, e o seu ar varia de tal forma que às vezes nem me parece ele. Nunca vê ninguém a não ser o taciturno empregado de balcão com quem gosta de ter monólogos sensaborões sobre as manchetes dos jornais que se amontoam nos transportes públicos. Os seus óculos de péssimo estado e as suas bochechas de barba mal feita fazem só por si enervar qualquer ser humano com mínimas capacidades visuais. A sua postura e andar "i own the place" dão cabo de qualquer fígado de tão azedo.
Irrita-me e nada posso fazer. E por isso a frustração vai crescendo. Sou um assassino profissional. Sou muitas vezes eu que torno aquela facadinha no matrimónio literal, que resolvo à lei da bala quezílias e discussões. Sou eu que cobro literalmente o couro e o cabelo de caloteiros sem vergonha. Não é uma profissão de que possa falar em casa, mas a minha casa também não é daquelas onde se falam. O sangue espalhado no chão é a minha vida.
Mas não o posso matar a ele. A única coisa que me liga aos assassínios que faço são os molhos de notas deixadas em locais inóspitos. Se me ligo por um sentimento que seja então tudo pode ruir. Mas quero. Nas manhãs em que ele entra mais balançante só me apetece retirar a arma que trago junto às costelas e fazer um respiráculo naquele cérebro apodrecido. Chego a visualizar o círculo vermelho enquanto o sangue desliza até pingar do queixo para as sempre irritantes camisas brancas de fraldas de fora.
E não me entendam mal, eu não sou nenhum psicopata, ou sociopata, ou o normal tolinho que anda de rifle em punho a praticar o seu desporto favorito. E não deixo de espetar um balázio na tromba de alguém que não me agrade por medo de ser apanhado por um inspector gordo que fuma cigarros humedecidos com suor. Matar é o meu trabalho, e sei melhor que muita gente deixar o trabalho no "escritório". E sabia também deixar o mundo no sítio até este último caso.

As notícias, o trânsito e o tempo espalhavam-se pela casa enquanto me barbeava. Na minha cabeça não corria nada do que a televisão anunciava, mas sim a descrição exacta do que se iria passar. Tenho o hábito de narrar tudo do fim para o início, não sei se são tiques de profissão se de personalidade mas sempre foi assim. Imaginava primeiro tudo no sítio, depois eu a ordenar tudo, a morte, etc. Era o que corria na minha cabeça agora. A antecipação do serviço do dia. Ou pelo menos pensava eu.
Depois de empurrar a torrada, vestir o blazer e dar um último aperto ao nó da gravata fechei a porta reforçada do último andar que a esforço tinha transformado numa penthouse de luxo. Desci as escadas e fui visto por dois vizinhos que saiam também de suas casas. O prédio era fraco e os seus outros habitantes pobres. Assim o tinha escolhido eu. Esta gente tinha mais perguntas sobre si própria para se questionar sobre a vida dos outros. A minha vida também não era sujeita a questões, a gravata preta fora o início de uma desculpa para arranjar um carro funerário e deixá-lo à porta do prédio. A morte sempre limpa a cabeça de dúvidas, e no fundo nem a mentia, estava só um bocadinho antes de funerário na linha de comando. Sai para um sol radioso nada habitual de Janeiro. Caminhei calmamente até aquele que considerava o meu café. Também lá a minha profissão era tida como o que não era e assim é que estava bem.
O barulho de um sininho alertava o dono da minha presença. Mas hoje não era preciso. Senti o estômago revolver ao abrir da porta. Vi-me frente a frente com escassos metros de distância da personagem que me irritava solenemente. Com a calma injectada à força no sistema nervoso larguei no balcão um "bom dia" simplório e recolhido, tentando fazê-lo passar directamente ao senhor de avental.
-Bom dia ò chefe! E desculpe lá se lhe disser que não seja um tão bom dia pró seu negócio!
E após proferir esta frase no tom jocoso que a sua postura tornava nojento, desatou num riso tão desprezível que me vi mal para não dizer nada. Logo eu que sempre soube arrumar todas as emoções no fundo do poço. Sentei-me e pedi um café mas mesmo antes da sua chegada acendi um cigarro. Foquei a minha atenção nas nuvens alvas que saiam da ponta do cigarro enquanto largava nevoeiro sobre a mesa. O café caiu-me pesado no estômago e esta ainda reclamou mais quando o sujeitinho saiu e deixou um "Até manhã amigo" a dançar no ar.
Com uma palavra despedi o empregado e saiu para a rua de cigarro na boca. As nuvens que tinha largado lá dentro pareciam ter-se espalhado no seu cá fora. A minha disposição estava ainda mais enevoada. Sacudi os sapatos pretos e entrei no carro igualmente negro que reflectia a luz difundida nas nuvens. Arranquei para o destino pela rota programada na tarde anterior. Os dedos batucavam no volante a cada sinal vermelho e por isso decidi fazer-me acompanhar de música para que ela me limpasse o nervoso que ainda estalava nos meus dedos.
Depois de estacionar caminhei para o apartamento do alvo por um caminho de cascalho propositadamente. Além de me limpar os sapatos de qualquer areia indiciadora acalmava de uma maneira bestial. Era como um cerimónia tribal que preparava para o assassínio a seguir. Normalmente não precisava disto e começava a ficar inquieto. Para piorar uma chuva miudinha começou a cair no chão ainda quente do sol.
Procurei o número 23 e caminhei lentamente para a sua entrada. Verificando que a porta estava fechada e atravessei para o outro lado da rua. Olhei para o relógio e suspirei ao constatar que ainda estava dentro do plano. Com a companhia de um cigarro dirigi-me para a entrada do prédio oposto e longe dos olhares alheios esperei um movimento no 23. Depois de três cigarros a luz interior do prédio acendeu-se apesar da claridade que as onze da manhã espalhavam no céu enevoado. Atravessei para o outro lado e fingi tocar a uma campainha no exacto momento em que alguém saia do elevador. Aguardei um interlocutor fictício e quando o homem que saiu do elevador abriu a porta eu segurei-a dizendo para a minha suposta visita: "Já está aberta". O vizinho saiu e eu sai insuspeito. Enquanto subia no elevador tirei as luvas pretas do bolso, vesti-as e tirei do bolso umas algemas que segurei numa mão enquanto na outra segurei um pedaço de adesivo. Ao sair do elevador tirei o adesivo preto que coloquei no óculo do porta em frente à fracção B onde iria bater a seguir. Não devia estar ninguém em casa mas de qualquer forma não gosto de arriscar. O modus operandi é algo demasiado valioso para alguém como eu, e alguém ter uma pista que seja dele, é o mesmo que deitar toda uma carreira ao lixo.
Respirando fundo pressionei finalmente a campainha da porta que me interessava. Segurei uma algema aberta na mão direita enquanto esperava que o alvo magricelas e pálido abrisse a porta. Não tardou muito para ele aparecer com uma t-shirt velha e segurando uma toalha à volta da cintura.
"Bom dia, o meu nome é Pedro Amaral e trabalho para a Sentz Seguros" iniciei eu para quebrar o gelo enquanto estendi a mão com a algema dissimulada.
Logo ele me estendeu a dele num movimento mais reflexo e eu num movimento prendi-lhe esta à algema enquanto o meu joelho se enfiava contra o músculo da perna, causando a queda imediata. Rapidamente passei para trás dele prendendo a outra mão atrás das costas. Com um pontapé delicado empurrei-o para longe da porta para que esta fechasse. Com um pé fechei a porta enquanto me estiquei em direcção à camisola do alvo e lha enfiei na boca para que o barulho fosse menor. A surpresa do instante trabalha sempre comigo e por isso até calar o sujeito tudo tem que ser feito de uma assentada. Agarrando no colarinho por trás puxei-o até a casa da banho que tinha previamente estudado na planta. Lá chegado tive de passar do arrastar à força bruta, agarrando no magricelas cheio de medo e a pontapear tudo o que conseguia. A sua parca força e pouca agilidade fizeram embater a sua canela na parte debaixo da sanita o que causou guinchos abafados pelo tecido e uma menor agitação por parte dele. Aproveitando isso enfiei-o no chuveiro que me pareceu melhor opção do que a banheira com hidromassagem na altura de fazer o plano. Encostei-o de forma relativamente confortável mas os seus olhos esbugalhados espalhavam a agitação que os membros desgastados já não lhe permitiam. Aproximei-me de novo para abrir o chuveiro altura em que o franzininho decidiu espetar-me uma bela cabeçada na cintura. As minhas mãos evitaram-lhe a cabeça a tempo e nem hesitaram em enfiar-lha contra a parede. A força foi a suficiente para lhe fechar os olhos mas sem o deixar inconsciente. Abri o chuveiro e deixei que a água lhe suavizasse o choque. Afastando-me o suficiente para não apanhar com água, tirei do coldre que trago por baixo do braço a minha arma hoje tão infeliz e colocando o silenciador apontei-lha à cabeça. No instante exacto que abriu os olhos talvez sentindo o calor de ma bala apontada à sua cabeça, os seus olhos desfizeram-se numa expressão de medo. E neste preciso instante o meu mundo caiu. Pressionei o gatilho de forma errada. Com o medo que se apoderou de mim. A expressão que eu vi completamente assustada não era a do magricelas do número vinte e um da rua das magnólias mas sim a do gordo oleoso de carácter nojento e sentido de humor duvidoso. Quem eu tinha acabado de executar era ele, e ninguém me tinha pago para o assassinar. Felizmente a sua expressão só me tinha vindo assombrar no fim. Tentei expulsar o demónio de mim e voltar à rotina. Deixei a água correr até estancar a hemorragia, de qualquer maneira o finguelinhas não devia ter muito sangue. Fui à cozinha e procurei sacos do lixo. Como não encontrei um suficientemente grande tirei o que tinha trazido no bolso um daqueles pretos de grandes dimensões. Debaixo da banca procurei uma garrafa de lixívia. A boa arrumação da empregada deu-me facilmente o que queria. Fui até ao quarto e o nariz explicou-me que era seguro fumar aqui, tirei um cigarro e sentei-me na cama. Tentei expulsar todo aquele nervosismo de mim.
Já de noite deixei que um copo de Douro 2003 me escorresse na coluna e me limpasse esta carga que trazia. Tudo tinha acabado por correr bem. A casa limpa, o corpo desfigurado e abandonado como sempre. Sem razões para alarme. A não ser aquela cara que me tinha assombrado para sempre. E foi na placidez da lareira de Janeiro e com um cigarro a esfumar-se no ar que tomei a decisão que me traria aqui.
Na manhã seguinte, sem gravata no pescoço ou blazer a cobrir a camisa branca e o colete negro desci até ao café. A semi-automática enfiada nas costas presa pelas calças, o cigarro a escorre-me da boca. A barba por fazer e o cabelo desgrenhado de quem não se viu num único espelho. Os olhos fundos sobre olheiras negras como a noite branca. Os punhos cerrados em tensão pré-guerra.

Sentei-me de frente para a porta e pedi uma torrada e um sumo que se coloria por trás do vidro do balcão. O senhor Rodrigues por trás do balcão teve a hombridade de apenas subir a sobrancelha. Melhor para ele pensei eu. Já depois de eu pedir um novo maço de cigarros e o cinzeiro se encher dos restos do antigo o sininho no canto da porta dava a partida ao ritmo acelerado do meu coração. Com o seu ar gingão entrou o fantasma de toda a minha noite e disse no seu sorriso patético:
-Eh chefe, noite difícil!
Senti o meu estômago ferver como nunca antes. A minha expressão deve ter transparecido tão bem que ele virou-se rapidamente para o balcão e pediu o seu "pinguinho". Já o meu olhar nunca lhe saiu da nuca. A minha cabeça fervia com vontade de ver o cérebro dele fumegar à passagem de uma bala à queima-roupa. As suas mãos gordas e desajeitadas seguravam a chávena de onde sorvia o seu café descolorado. Até este acto era perfeitamente nojento. Hoje que me sentei mais próximo do balcão conseguia mesmo ouvir aquele barulho tão pouco civilizado. Tinha decidido não o fazer aqui. O café havia sido tão bom companheiro que não me parecia justo estragar assim com aparições macabras em todos os jornais. Aguardei que depositasse a moeda no balcão e soltasse palavras de despedida num tempo que pareceu eterno.
Com um acenar de cabeça deixei a minha despedida no balcão e meia dúzia de notas bem crescidas na mesa de onde me levantei.
Com a respiração já ofegante iniciei a perseguição e contei a custo 10 longos metros de distância do café. Terminado esse limite imposto por mim não perdi tempo a enfiar-lhe o pé pela perna a dentro. Senti o osso ceder e toda a sua figura balofa se espalhou no alcatrão de má qualidade. Só a queda deixou logo a sua delicada cabeça a sangrar. Fraco de merda! Conduzi repetidas vezes o meu pé contra as costelas protegidas por uma densa camada de gordura. Até que o meu desespero atingiu o clímax e ajoelhando-me em cima dele fiz colidir o meu punho com aquela cara que me assombrou e me fez perder tudo. Havia de lhe tirar para sempre aquela expressão parva da cara gorda. Quando já a minha respiração se desvanecia e a dele desaparecia levantei-me e olhando-o nos olhos ensanguentados e inchados, retirei das costas a arma quente do contacto e apontei-lha à cabeça. Já conseguia ouvir as sirenes e a minha respiração acalmou. Disparei e senti-me um peregrino chegando a Roma. O meu braço desceu apontando a arma à terra, e a policia não tardou a chegar. As mangas da camisa todas vermelhas e a arma na mão fizeram rapidamente o ponto da situação e não ofereci resistência para chegar aqui.
-Essa parte já nós sabemos senhor Semedo. Fale-nos das outras 42 mortes.
-O registo dessas pode encontrar em pastas separadas no meu escritório. -respondeu o homem de mangas vermelhas sentado na sala escura com um espelho onde ninguém se via e onde todos viam.


*uma pequena homenagem a um dos meus filmes favoritos De Battre Mon Coeur S'est Arrêté

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2 Comentários:

Blogger Gui disse...

Eu li! Todo sim. Mesmo todo e não foi na diagonal.

Está tão bom que enquanto lia, o meu ritmo respiratório alterou-se por várias vezes (consoante a tensão) e os meus olhos humedeceram de pena do lingrinhas e do badocha. Apesar de este último me enervar também a mim um bocado...onde é que já e viu a sorver o pingo...E vi o "filme" todo a desenrolar-se na minha cabeça!

Enfim, rapaz...

Tu nunca me desiludes...

10:51 da manhã  
Blogger styska disse...

eu já sei que escreves bem. já sei que tens talento, daqueles que não se encontram todos os dias. no entanto, consegues sempre surpreender-me, consegues sempre superar-te! e é maravilhoso poder acompanhar-te nesta viagem. uma viagem em que, de tão bem escrita, não preciso fazer o mínimo esforço para ver todo o caminho desenrolar-se à minha frente. gostei. gostei muito. e peço-te, se me é permitido, para escreveres mais contos, novelas, o que quiseres. neste registo ou noutro. escreve. aproveita o teu tempo, aproveita todas as personagens que tens à tua disposição! este é o caminho a seguir.

*uma destas noites a cadeira vai ser tua*

8:57 da tarde  

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