sexta-feira, maio 13, 2005

Encontros nocturnos I

Uma gota esfria-me a face. A chuva ameaça mas não chove. Enquanto ando sinto o manto pesado da noite negra nos meus ombros. Encaro somente o chão, não quero ver se não o esplendor que me espera. Nas poças de água já abandonada vejo luzes amarelas que me cegam o chão. Só ouço os meus passos e o vento que me sopra das narinas. A ansiedade vai crescendo em mim como numa criança e há medida que chego mais perto vou aumentando o metrónomo no meu peito.
A certo ponto o coração dispara num estrondo e a adrenalina irrompe nas minhas veias. Apetece-me correr, apanhar cada pedaço de ar, correr, chegar por fim ao meu destino. Mas não corro, deixo que toda a ansiedade fermente para que no destino me possa alimentar dela. Já não falta muito. O suor cobre-me já o rosto. Sinto-me tonto de mascar ar sem engolir. As minhas pernas irrompem em chamas, o mundo começa a rodar, sinto-me tão tonto que tenho que levantar a cabeça.
Ai está ele, fluindo negro, polvilhado de candeeiros laranjas. Estaco e ouço as pequenas conversas com a margem. Aproximo-me sem tirar os olhos do negro que corre. Encontro o pousio e sento-me. Sorrio-lhe então e cumprimento-o com verdadeira amizade. O Douro responde-me com o eterno sussurrar, mas que me fala mais que palavras.
Venho de mãos vazias, nada lhe trago a não ser o que me povoa. Abro um garrafa de Vinho do Porto e faço-a cantar para o meu copo. Pouso o copo com um tinido e abro então a cigarreira metálica e retiro uma barra castanha. Acendo a cigarrilha e deixo que o cheiro me invada as narinas. O sabor amargo instala-se na lingua e combato-o com um doce gole do néctar vermelho. Deixo que os dois sabores se encontrem enquanto medito sobremim. A ansiedade transformou-se já em melancolia e tomo-a sofregamente. O momento solitário e belo, repleto de magia e unicidade.
Um rumor vindo de trás faz desaparecer o vinho e a cigarrilha, mas nem viro a cabeça. O rumor vai crescendo e ouço nitidamente o clamor das pedras esmagadas por sapatos pesados. O halo aparece primeiro imediatamente seguido de uma figura de capuz. Só vejo uma silhueta preta na parca luminosidade. Senta-se a meu lado, mas a alguma distância. O medo não vem porque nem penso nele, estranhamente sinto-me seguro. Olho pela canto do olho e vejo uma mão nitidamente feminina a pousar-se sobre os joelhos.
Escondo-me da vigia rodo a cabeça e observo com detalhe a mão. Nunca me impressionei por mãos, são meros apêndices, criados para cumprir ordens, as obreiras da razão. Mas estas sorriem-me. Brancas, alvas contra o fundo negro, esfíngicas guardam o charme numa imobilidade graciosa.
-Tenho frio.- o meu coração irrompe de surpresa com a voz que me atinge. Recuo para o interior da minha casca amedrontado.
Quando o silêncio volta a reinar eu saio lentamente para a noite. Faz frio. Na solidão estava bem a ouvir o rio lamentar-se, mas agora algo me puxa a garganta, silêncio torna-se insuportável e preciso de falar. Mas nada sei dizer.
Deixo escapar um «Olá». Ridiculo, uma idiotice. Não haveria algo mais inteligente para dizer do que um "olá"? Para meu alívio uma resposta surge.
-Não sei um nome para te dar, mas podemos fingir que já nos apresentamos e continuar...
-Continuar? pergunto ainda entorpecido pelo medo.
-Não gosto deste sítio. Olhar o rio faz-me querer partir. Faz-me pensar com seria fácil.
-Porque não o fazes?
-Talvez me chame Beatriz , mas ainda não sei. Talvez me chame Bia.
Viro de novo a cara ao seu encontro, tento traçar um perfil através do pano escuro.
-Não foste tu que te baptizaste, ou sequer escolheste que te chamassem josé, antónio, manel.Tudo porque não és tu que te chamas.
Sorrio e respondo a frase que tantas vezes me repeti.
-Mas podes dar-te nome, escolher um diferente todos os dias, mudá-lo conforme a tua disposição. É o teu nome não o que te chamam. Hoje chamo-me Ricardo.
O silêncio responde-me pesadamente. Estiquei-me demais sem testar a segurança primeiro, consigo ver a respiração plena de raiva a diluir-se no ar.
-Gosto deste sitio, tento eu amenizar, Só aqui eu sou verdadeiramente, aqui quando o rio me falo, o ar negro me ouve os lamentos e ninguém faz menos de mim.
Num segundo o vulto levanta-se e apressa-se a ir embora. O vento irritado com a isolência descobre-lhe a cabeça e vejo o negro dos cabelos a esvoaçar irritados. Já vai longe agora. Mas sei que voltará.

1 Comentários:

Blogger Zana disse...

tive dificuldade em não me deixar levar pelas palavras, pelo romanticismo, pelo que li em geral... Gosto da forma constante como o fazes, da clareza, da diversidade de visões... Qualidade e destreza de linguagem combinada com textos lindos de se ler.
bom.. tudo por dizer que me tens viciado na tua escrita;O)

8:13 da tarde  

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