quarta-feira, maio 25, 2005

Encontros Nocturnos II

Olho o mundo lá fora. Escondo-me em frente à janela com a cortina a cobrir-me as costas para que ninguém me veja. Como se alguem me visse. Espero impacientemente que a noite caia. No pequeno espaço que serve de aconchego à janela deambulo para trás e para a frente com o nervosismo. Vão-me surgindo memórias foscas da noite de ontem. Mal consigo já voltar a reconstruí-las. Estão gastas e puidas de tanto uso lhes dar. E no entanto só foi ontem. Ontem ou hoje? O que importa? A distância na minha cabeça é enorme, nem em horas a consigo medir, nem em milhas. Nada.
De quase nada me recordo. O vulto negro, as mãos de madre-pérola, a voz doce e terna, o cabelo carregado a voar ao vento, um vento frio que ainda e gela a cara.
Ouço Amanda chamar-me para o jantar. Desço as escadas e sento-me na demasiado longa mesa e sinto o frio da solidão cair sobre mim. Duas velas criam cúpulas amarelas nas pesadas cortinas negras que a meu mando impedem a cinzenta luz melancólica de entrar. Faço sangrar a garrafa para o meu solitário copo enquanto espero a chegada do jantar. O vinho vai-me rodando no copo esperando a morte lenta da minha boca.
Chega o jantar e como no silêncio de sempre. O jantar sabe-me bem, como a um condenado prestes a ser enforcado, mas no meu caso é o oposto. A ansiedade de algo bom transforma a refeição no acto agradável que não o é a muitos anos.
Mal Amanda acaba de retirar a mesa corro a meu quarto para me preparar. Visto-me com detalhe e procuro a mais pequena falha que desarmonize o conjunto. Olho o espelho e esforço-me por fazer sair de lá uma imagem agradável. Espero que o consiga fazer diante dela.
Desta vez desço elegantemente as escadas tentando parecer o que me devia ser intrínseco. Olho o pêndulo e seguidamente o relógio.-Sete e meia murmuro baixinho para a caixa de vidro que guarda o tempo.
Mando Amanda chamar o cocheiro. A ansiedade é tanta que indo a pé corria o risco de desatar a correr a meio do caminho. Opto pela via mais sensata e discreta ao mesmo tempo.Ouço os cavalos lá fora e saio ponderadamente.
-Boa noite senhor. Como está esta noite?
- Estou muito bem Recta. - A excitação do cocheiro é bem patente e derivada ao facto de eu raramente fazer uso dele. Não por não simpatizar com ele porque é meu amigo desde miúdo altura em que me costumava contar como o seu pai ganhou o nome Recta por ser o único cocheiro que enjoava, e por isso só gostava de rectas, mas nunca gostei de fazer publicidade à minha riqueza porque nunca gostei dela.
Entro rapidamente dizendo o destino ao velho cocheiro. Enquanto atravessamos a vila ainda no crepúsculo tento esvaziar a mente e não parecer demasiado ansioso. Não sei se a espera vai ser grande ou sequer recompensada.Saio e despeço-me com um aceno. Caminho pesadamente tentado fingir aquele ar superior tão característico da minha posição social.
Com a preocupação nem reparo quando chego ao rio. Sento-me no banco frio e vou olhando o negrume dos sapatos que trago calçados. Hoje não comtemplo o rio, seria desrespeita-lo com um olhar apagado e encher a sua superfície com preocupações sem sentido.
Como uma repetição da noite passada ouço o rumor que se transformam em passos que esmagam o cascalho. Mas desta vez o ritmo ficou muito mais rápido. Olho para a sua fonte e vejo uma sombra delineada pela luz amarela do candeeiro que ilumina a entrada da rua. Tento ver um rosto ou delinear uma face mas tudo não passa de negro.
Enquanto espero que a imagem fique nítida penso apressadamente no que dizer caso seja ela. É ela. Veio ao meu encontro, tal como eu não esqueceu o nosso encontro de ontem. Ainda sentado acompanho a sua trajectória com os olhos esperando pacientemente que cruze a linha da luminusidade. Mas no limiar da escuridão vejo-a desaparecer numa queda brusca.
- Está bem? Peço imensa desculpa. Deixe-me ajuda-la a levantar-se.
Ela afasta-se nitidamente tentando não ferir mais o seu orgulho.
- Calculo que sim, fui uma queda feia. A sua sorte é que estava mesmo a passar por aqui. Reparei que ia com pressa. -digo eu tentando mostrar que o seu orgulho permanece imaculado.
Ela levanta-se e olha-me. Lembro-me de novo quem esperava. A cara que se me afigura é de uma beleza imensa e desejo que seja Beatriz, mas a minha malfadada experiência grita-me aos ouvidos que não é ela.
É demasiado bonita, demasiado interessante para vaguear à noite procurando companhia. Mulheres destas estalam os dedos e caem-lhes centenas de pretendentes aos pés. Não consigo disfarçar a minha desilusão e a reacção não tarda em chegar.
- Obrigado por tudo. Eu estou bem. Foi gentil de sua parte, mas tenho de ir agora.
Já não me olha, corre agora para longe O vento vem e vejo o negro dos cabelos a esvoaçar apressados. Nesse momento um raio atinge-me deixando o meu corpo em plena agitação. Imediatamente grito desesperado.
-Beatriz!
Por momentos penso que me enganei porque ela continua a andar, mas instantes depois estaca ainda virada para a frente. Fico como que em choque parado à espera de uma reacção.
Começo a andar na direcção dela, ela vira-se para mim e segurando-lhe a mão sem pensar despejo-lhe à face o que me vai na boca.
- Eu sabia que eras tu. Desde ontem que não consigo pensar em outra coisa. Por muito que me esforce só consigo trazer a memória instantes da noite de ontem. Por favor, deixa-me acompanhar-te até casa.
Não me responde, vejo uma faca a aproximar-se perigosamente do meu coração. Mas sem medo continuo a olhá-la no âmago.
A faca acaba por perfurar largando um "Desculpe-me" à medida que vai cortando a pele.
Ela deixa-me a sangrar e larga a correr sem me olhar. Desta vez não estou disposto a esperar. Cambaleando e sangrando do meu coração corro atrás dela, ela nem olha paratrás se calhar com medo, mas tudo o que eu quero é não a perder de vista. Corro mas ela leva-me já um avanço. Até que no dobrar de uma esquina a vejo entrar para uma casa, o que eu não contava era que fosse aquela casa.
Depois de ter passado algum tempo em frente ao edificio deixei-me levar pelo impulso. Entrei. Ainda vejo a Beatriz mas ela mais uma vez foge, desta vez para dentro da cozinha. Parecia surpreendida, eu não. Não estou surpreendido, estou em choque. Assim como ela viro-me e fujo, no preciso momento em que a cara gorda do estalajadeiro se sorri para mim. Corro, subo as ruas sem me cansar até chegar a casa. Entro e encosto-me à porta. Deixo-me escorregar enquanto me sento tentando respirar de novo.

2 Comentários:

Blogger A. disse...

Muito bom!
Muito bem escrito! Tens futuro! ;)
Gostei... =)
Bjs***

1:59 da tarde  
Blogger Liliana Bárcia disse...

adorei este encontro... muito místico, muito escuro, tal como gosto, aquela sensação de escuridão maravilha-me... "a caixa de vidro que guarda o tempo" pareceu-me ser algo bastante interessante, fantástico mesmo essa ideia de se ter o tempo guardado quando, no texto, o tempo parecia que não tinha passado!

e o facto de se levar com uma "facada" é continuar a correr atrás de algo é-me algo que me parece irreal mas, vendo bem as coisas, todos nós já o fizemos...

Um grande abraço,
Liliana

9:20 da tarde  

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