sexta-feira, julho 15, 2005

Devaneios flutuantes/ Ensaio

Acordo envolto em água, uma toalha cobre-me os ombros. Cada pequeno pelo branco toca-me o corpo desnudo por baixo do manto. O meu cabelo pinga para o chão uma mistura de àgua e suor. Levanto a cabeça procurando o lugar onde estou. O chão está coberto de madeiro, à minha volta vejo o salpicado de pequenas poças de mim. O ar toma a tonalidade âmbar da madeira e respiro o castanho. Um telhado branco cobre o céu que adivinho negro. Não vislumbro qualquer parede para além do manto que cobre as extremidades da madeira. Duas luzes amarelas empoleiradas nos dois cantos opostos criam dois cones amarelos que iluminam a capela. Levanto-me deixando a toalha no chão. Sinto os músculos esticarem enquanto os ossos resmungam estalos agoirentos. Quanto tempo terei estado a dormir? Não vejo vivalma e os únicos sons que ouço são os grilos e as cigarras cantando músicas obsoletas. Olho de novo o chão e tento perceber o seu fim. O brilho do verniz faz-se notar pelo cheiro incisivo que me entra pelas narinas. Os meus pés quentes deixam auras baças no chão. Caminho lentamente sentindo a solenidade do meu acto. O pé a despegar-se da terra largando a gravidade no ar; o ar a ser cortado pelo calor que emana de mim; o implantantar de novo, a queda para que o outro pé possa também viver, andar de novo.Perco-me em voltas lentas observando a beleza do meu andar. Quantos morreram para que o ser humano conseguisse andar? Que graciosidade tem o meu andar. Estaco de repente. E se dançasse? Não sei dançar... Mas o que é dançar? Será que exige saber? Já o andar em si é uma dança.Sinto a euforia a crescer no meu peito e sem medo entrego-lhe o meu corpo.
Ele do nada voa.Assumo a posição de voo e no zénite da minha trajéctoria o tempo pára, o ar que me atravessa engrossa para cimento e eu fico parado no ar.Os braços abertos as pernas esticadas do salto. Não sei quanto tempo passo assim mas de súbito um vento demoníaco vem
e atira-me para o chão. Eu supreso não tenho tempo de aparar a queda e espalho-me no chão como morto. Rebolo e fico de fronte para o tecto branco. Respiro em soluços abruptos e o meu corpo queixa-se sonoramente. O sabor vermelho do sangue acorda-me a língua . Levanto-me a custo e começo a andar, vou sair deste inferno. Coxeio ainda da queda e não mais danço o andar.
Chego ao fim do estrado de madeira e olho o abismo. Salto e logo os meus pés encontram o frio da relva orvalhada. Caminho desajeitadamente enquanto a minha pele se arrepia com o frio que a cobre. Olho de novo a casa aberta e fixo o olhar na toalha. Dou meia volta e corro para a apanhar. Tropeço numa madeira proeminente e o meu pé incha desmedidamente. Agarro a ponta da toalha e imediantamente corro de volta para o exterior só me sentindo seguro quando os meus pés tocam a relva de novo.
Sinto a inclinação a aumentar e sou obrigado a reduzir a velocidade para não cair. Sinto os músculos das pernas a arderem-me e deito-me na relva molhada. Enrolo a toalha à minha volta e faço-me rebolar pela pequena colina. Chego ao fundo e sinto a areia a envolver-me. Então vejo água à minha frente. Lembro-me porque estou aqui. De novo memórias me atravessam, uma e outra vez e sinto a raiva a crescer dentro de mim. Uma agonia triste e revoltada invade-me e trinco o lábio para não chorar de nervoso. MAs a irritação permanece dentro de mim esperando, aguardando, olhando-me com os seus olhos de lobo. Sinto o meu corpo entrar em frémito e cada músculo começa a tremer em nervosismo. Então como uma bomba o meu corpo explode, as lágrimas atravessam-me os olhos, e então a dança recomeça, uma dança irada, cheia de raiva. Os meus punhos esmagam a areia, as minhas pernas voam em direcção à relva e os meus dedos arrancam cada caule verde que se atravesse no meu caminho, sinto a água a descer-me o queixo e o cheiro do sangue povoa o ar. Continuo em batalhas com o ar atirando-lhe todas as minhas frustrações. Até que perco todas as forças. Caio ao chão puxo a toalha e nela me envolvo até que durmo.


Devaneios Flutuantes - Luisa Amaro e Mario Carvalhinho in Canção para Carlos Paredes
Ensaio - Toranja in Segundo

4 Comentários:

Blogger Ana Sofia disse...

Que posso eu dizer?! A tua forma de escrever é fantastica, deixa-me deslumbrada!!

jinhos
Anok@s

1:20 da tarde  
Blogger styska disse...

Tal como a Anok@s, fico sempre sem saber o que te dizer... Repito-me em cada comentário, mas a verdade é que adoro a tua escrita e estas pequenas estórias que aqui nos deixas deliciam-me! :)
Jitux***

11:06 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Parabéns...
Efectivamente escreves muito bem.
É uma rara qualidade juvenil hoje em dia e que merece todo o cultivo e incentivo!
Aqui fica o meu comentário:Vai aonde te levam as palavras,só elas te darão acesso à mais profunda realidade do sentimento,essa "agradável doença" que a todos nós domina...Karatekid

12:08 da tarde  
Blogger Liliana Bárcia disse...

Aqui está um texto bastante forte e envolvente, toda essa sequencia que termuina sempre numa vontade de dançar faz-me pensar que sabe tão bem sentir que os pés não tocam no chão como quando simplesmente caminhamos..

Muito bom, como sempre :)

Beijinhos
Liliana

11:52 da manhã  

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