quinta-feira, janeiro 25, 2007

Tempos Adversos/Restos

Há vidros no chão. Ainda não abri bem os olhos mas vejo reflexos no chão. Fui eu? Olho as janelas no tecto. Não vejo recortes no escuro do céu. De onde virão os vidros? Esfrego os olhos e volto a abri-los. Se ao menos tivesse luz. Quem foi que a apagou? Respiro e fecho os olhos. Abro-os e esquadrinho o negro. Só há aquele contraste no chão. O interruptor, onde está? O sol demora? Respiro, num crescendo até me levantar. Caminho evitando o contraste do negro no chão e palpando a parede sinto o clarão bater-me nos olhos. Fechados. Lentamente vão se abrindo deixando aos poucos que os fios de luz passem pelas pestanas. Há folhas no chão. Escritas. Palavras amontoam entre os montes de folhas espalhados pelo chão. Há livros no chão. Desço ao chão outra vez. Junto a uma folha. Pouso lá os olhos. Ainda não se constroem as palavras nos meus olhos. Feridos. Estive a chorar? Porque estive a chorar? Tento outra vez, mas os vidros afinal estão nos meus olhos e impedem-me de ler. Calmamente danço com o olhar até ele se habituar ao negro das letras contra o branco. Da folha grita-se uma só frase entre todo o texto. “Lutamos em vão”. Fecho os olhos e respiro. Percebo tudo agora. Os vidros são afinal os pedaços que o meu coração largou sobre o chão. São restos de nós. Levanto-me, vou ao encontro da porta. Andar. Claro que temos que andar! Tudo se entende agora. Abro a porta e a outra. Vejo a estrada. Os meus percorrem-na. Correm-na. Para longe de ti desta vez. Para fora de ti desta vez. As tuas palavras ecoando-me agora ao ouvido, as palavras que diziam que nada é eterno, que um dia a história acaba.


Quem não quis saber tirou a mão e partiu. Deu o que não tinha para levar. Fechei o corpo e fugi. Ainda não sei para onde, ainda não sei porquê. Mas o meu interior ainda arde. Labaredas laranja consomem o meu interior ainda que não se vejam do meu exterior de fora. Sou uma sombra do que era. Ninguém quis saber, toda a gente tirou a mão, deram o que não tinham. Levaram-me e eu fugi. Levaste-me. Há um resto de nós aqui. Há restos de nós no fogo. Mas o teu sorriso ainda vai arder. Porque é enorme e queima devagar. A esta distancia. Queima mas já aqueceu. Quiseste-me saber sem restrições, quiseste saber-te dona de mim. Já não és, nem nunca foste. Os dias amontoam-se sobre esta minha fuga. Não vou voltar porque já nem tu estás parada no mesmo sítio. E nem que nos quiséssemos encontrar não íamos conseguir. Daríamos voltas numa dança interminável que o ritmo ditaria. Fantoches da guitarra, marionetas desse baixo. E tu sabe-lo, já o sabias naquela tarde de Março em que me mostravas no mar o infinito que sabias perdido em nós. Mas deixaste que o licor azedasse e se tornasse no veneno que me injectaste durante estes anos. Mas agora tu também o tomas, também te contorces com as dores que foram minhas. Deitas-te agora no chão que calcaste, bebes agora tudo o que me quiseste espremer. Não te digo isto de cima mas digo-to daqui do teu lado. Não lado a lado. Costas com costas, mas no mesmo chão. Hoje vens tu e eu já sei de cor o travo do teu licor e os restos de mim no chão.

*Textos feitos a partir das músicas dos Toranja "Tempos Adversos" e "Restos" para um projecto daqui

3 Comentários:

Blogger FLY disse...

Fico sempre encantado...

1:28 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

eu tb fico sempre encantada... e estas palavras sabem bem... a um sumo especial e eterno.

não te sabem ao mesmo?

2:23 da manhã  
Blogger SA. disse...

No outro dia perguntaram-me porque te chamava mestre, não respondi, é claro.

Mas a cada novo post descubro e solidifico o porquê de seres o meu mestre nas palavras (o outros tipo de mestre que és para mim não se consolidam por esta via).
Por textos assim, por sonhos assim...


pah... tu és grande

11:11 da manhã  

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