quinta-feira, junho 19, 2008

Bife Picado
Ou a receita de um serão bem passado

Pegue-se num espectáculo bem saboroso, pleno de condimentos e já marinado em boa parte dos espectadores. Abra-se um auditório e corte-se tal que fique tão próximo e íntimo como uma pequena sala. Sirva-se a entrada:

Duas luzes, um piano, dois talentosos performers, um fundo negro. As luzes preenchem um espaço rectangular que os performers enchem de início. O piano desfaz-se em mil e uma variações trazendo-nos o sal da saudade, o amargo do fel, o doce algodão doce ou até um fresco refresco de verão. O bailarino traz-nos o verão. Traz-nos o mundo a cada segundo. O piano condimenta a transfiguração permanente dos pés dançantes que tanto voam como uma pomba branca em solo sagrado, como se arrastam pesados em lama negra. Escorrega-se o tempo por entre o interpretativo corpo do bailarino que acompanha com sal do suor cansado a pingos constantes. Quase que cansa o comensal perdido na viagem que não é a sua. Perde-se totalmente no fim com um enorme apetite de mais.

Com os convidados já de saliva curiosa no peito sirva-se então a sopa. Um Pot-Pourri de poesia servida em banco iluminados:

Uma dupla de poetas, 3 pares de bons leitores, um sem fim de poemas bem constituídos. Chegam primeiro as vozes femininas. Espalham na mesa uma boa manada de poemas frescos ainda crus de risos, mas bem areados em sorrisos. Depois o par mais improvável masculino. Bem temperados, depois de bem marinados que resulta num sabor forte e bem apontado à cabeça. Não recomendado a cabeças light. Depois de risos que martelam bem as palavras na parte de trás da cabeça passa-se ao casal. Aqui um aviso maior aos corações light. Palavras de ambos enchem-nos o peito numa torrente sem fim. As palavras além de rápidas e afiadas, querem-se quentes e plenas de sentido. Os olhos tendem a fechar-se e viaja-se num carro de quatro piscas ligados. Ligam-se os quatro piscas dos comensais e o peito bem posto num rosbife mal passado.

Vai então à mesa a sobremesa do almoço. Aproveita-se os pratos em mau estado para espalhar o gelado.

Uma mão cheia de senhoras de idade curta, uma improvável girls band, um palco bem polvilhado de luzes. A música esquece-se que é música e enrola-se muito bem no ambiente de luzes e de vestimentas. As coreografias raladas em finas tiras de humor e as girls bem marinadas em vontade de sátira. As 5 coloridas bolas de gelado servem-se com banana pouco natural e mas sem guarda-chuvinha.

Dá-se então uma tarde solarenga de intervalo. As conversas digerem o almoço, o almoço assenta no estômago improvisado. Depois da ansiedade se sentir nas pontinhas dos dedos abrem-se de novo as portas para novo manjar. Dança flambé.

Um assombroso trio de bailarinos. Um conjunto de roupas improváveis, e um tema que se unta bem no ouvido. A dança desfaz-se bem em palco com poucos movimentos dignos de um tutu. Os bailarinos movem-se para formar sucessivas Polaroid de expressões caricatas e posições metafóricas. Os pés descascados logo de inicio. As cascas improváveis que se vão espalhando. As Polaroid começam a surgir repetidas mas de personagens diferentes. As metáforas começam a ficar menos desfocadas. As Polaroid mais salteadas. O seu conteúdo cada vez menos cru. E as luzes fazem por colorir os bailarinos numa cor que se afigura como um retrato a sépia. E eis que com um golpe de pulso da frigideira, e após mais alguma roupa cair, o comensal vê-se confrontado com o inflamar das Polaroid trazendo a nudez completa um inflamado picante às imagens metaforizadas. O fogo de um constrangimento ou a naturalidade de um flambé anunciado quase que grita nos ouvidos o que já de cedo se ouvia. As Polaroid queimam-se numa escuridão espalhada pela saída dos bailarinos.

De carne ainda inflamada sirva-se o prato principal. Uma salada russa de poemas com um sem fim de ingredientes.

Seis cadeiras de costas, uma Caixa Geral de Despojos, densas luzes, uma floresta por trás. Levantam-se poemas. Larga-se no ar o cheirinho de cada um deles e caem no estômago da alma sem que se dê conta. Quem cozinha cada um deles é de um talento imenso, e cada estilo á único. Sirvam-se palmas para tão boa coordenação cénica, sirvam-se sorrisos quentes a quem preparou tão divino manjar. Há um prato que merece segunda dose:

Pinte primeiro uma gaiola

com a porta aberta.

Em seguida pinte

alguma coisa graciosa,

alguma coisa simples,

alguma coisa bonita,

alguma coisa útil...

ao pássaro.

Depois, coloque a tela contra uma árvore

no jardim,

no bosque

ou na floresta

e esconda-se

atrás da árvore

sem dizer nada, sem se mexer.

Às vezes o pássaro chega logo,

mas pode levar muitos, muitos anos

até se resolver.

Não desanime,

espere.

Espere, se preciso, durante anos.

A velocidade ou a lentidão da chegada

do pássaro, não tem a menor relação

com a qualidade da pintura.

Quando ele chegar

(se chegar)

mantenha o mais profundo silêncio,

espere que ele entre na gaiola.

Depois que entrar,

feche lentamente a porta com o pincel.

Aí então

apague uma por uma todas as varetas.

(Cuidado para não esbarrar em nenhuma pena

do pássaro.)

Finalmente pinte a árvore,

reservando o mais belo de seus ramos

ao pássaro.

Pinte também a verde folhagem e a doçura do

vento,

a poeira do sol,

o rumorejo dos bichinhos da relva no calor da

estação.

Depois aguarde que o pássaro se decida a

cantar.

Se ele não cantar,

mau sinal:

sinal de que o quadro não presta.

Mas bom sinal, se ele canta:

sinal de que você pode assinar o quadro.

Então retire suavemente

uma pena do pássaro

e escreva o seu nome a um canto do quadro.

Jacques Prévert

A sobremesa afigura-se deliciosa. Uma pequena tábua de queijos de produção própria e importação do interprete Tiago Bettencourt. Mostra-se um rockstar que se desdobra em sabores e autores para caber neste jantar. O humor fica ainda sobre a mesa, e ás vezes parece que o fumo forma dupla com o cantor bailando entre as luzes bem provadas.

Um serão bem passado, gostoso e de barriga bem cheia.

4 Comentários:

Blogger Gui disse...

um aplauso de pé! Eu apesar de não ter estado lá, estive lá, agora, porque tu me levaste lá. E vi esse desfilar de pratos sob os meus olhos.

E repito repito sem cansar a dose do quadro do pássaro.

(aposto que o teu cantava...)

Sublime!

10:42 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Parabens pelo texto. Espectáculo sublime, estou inteiramente de acordo, pois tive o prazer de assitir.

3:25 da tarde  
Blogger styska disse...

de cada vez que lá vou saio de lá a pensar "este foi o melhor" e na quinta seguinte conseguem sempre superar-se! o tca está a tornar-se num lugar mágico.

5:07 da tarde  
Blogger Lupa disse...

Saborosa descrição.
O gelado derreteu-se com as palavras!

Um abraço, M.

P'la Lupa,
D.D.

12:27 da manhã  

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