sábado, maio 10, 2008

Sal dos Meses em Vertigem

Ainda não percebo porque continuamos a acender a lareira no Maio que se pôs. Esta chuva já não molha e o frio já não medra. Se nos faltar o calor em Setembro depois hás-de queimar as uvas no lume. Dá-me antes a malga do sangue de Agosto que assim aqueço-me melhor.

Sem sangue em Agosto, o tempo torna-se ridiculamente incoerente. O tempo que traz ora ciclones, ventos sem sentido de estética que me fazem nós no cabelo e que me levantam a saia lascivamente; o sol que nos arranca a pele quando tudo o que queremos é continuar a sentir o cheiro de Março na pele. Este tempo, que outro?, que só não é um inútil incompetente por nos deixar usar óbvios óculos de sol, escondendo que a noite passada foi de sal e que, afinal as lágrimas deixam cicatrizes. Ainda assim, sair para a rua de sol quando cá dentro as nuvens são cerradas, lembra-nos que o mundo nos ignora e que, no fundo, o ridículo de Fevereiro se perpetuou e que não há vento que o leve.

Deixa as águas de Abril, deixa tudo o que queima o peito menos o sol de Julho, deixa-te ficar no manto de papoilas do novo verão. Amanhã acordas cedo pela manhã. Espalhas-te no vento com a seara a ondular e depois sentas-te naquela cadeira que temos no alpendre para secar o sal. Leva só uns quantos cigarros e o espaço da memória para um livro. Mais tarde eu levo o vinho e levo o meu discurso lento e rouco do tempo. Quando já for Junho e o ar deixar de espirrar, bateremos à máquina uma história que seja de Inverno, e tu deixas lá a tua neve. Depois virá a noite e cantaremos músicas no tampo da mesa, enquanto deixamos que o vermelho quente do vinho se espalhe pela cantiga de Maio.

Janeiro é a voz. Não por ser o primeiro, que estupidez!, nem tu o aceitarias apenas por isso. Verdade é que foi nos primeiros dias do ano que te descobri. Exibias um lenço ao pescoço, com todos os tons de vermelho que conheço - estava lá o afamado sangue de Agosto, quente, o vinho de Outubro e claro, não poderia deixar de ser, o esbatido vermelho daquilo que fica. Levantaste-te, era a tua vez, e tu, sempre coerente, leste o poema que trazias no caderno de capa grossa e que eu trazia já no meu peito mesmo antes de o conhecer. Abriste a boca e a verdade não podia permanecer escondida - revelaste-a, fugiu-te, por entre os lábios rubros, com a voz de Janeiro - "Um vermelho assim não tem regresso".

Lembro-me bem da ressaca de Dezembro, lembro-me dos dedos gelados a transcreverem um poema por entre as nuvens de respirar. Lembro-me de chorar. De lágrimas quentes contra o Natal frio.
"Habituou-se a caminhar
sob os plátanos, diluindo
ressacas e lembranças imperfeitas.
Pouco teriam em comum.

Foi num bar, o primeiro
encontro, em lados diferentes
mas não opostos do balcão.
Ela vestia o mais ardente
vermelho que já vira,
sob um cinzento agreste que
o frio de Janeiro quase desculpou.

Não dormiram logo juntos.
Mas ficou a dever-lhe um rasto
de esperma feliz, na cama
em que morria só. Ao seu lado,
Berkeley, Wittgenstein, Espinosa,
páginas de um curso que não queria
e que nem ao menos lhe sujava as noites.

Semanas depois, passeavam de mãos
dadas pelo jardim ou pelas ruas
mais próximas do bar.
Até ao dia em que deixou de vê-la.

Coração em brasa, cinza por todo o lado
– um vermelho assim não tem regresso."

O sangue escorria-me dos dedos cerrados, que vestiam pensos da ceifa de Outubro. Como poderia esquecer Janeiro. Como te pode esquecer Novembro? A noite chega de vez, e tu chegaste de vez ao tempo da gente que cresce. Tens que voltar a Novembro para voltares a trazer os traços que te levaram as rugas em Fevereiro. Tens que por a máscara do fim de Fevereiro para que te resguarde do sol do dia de Amanhã. Ainda é cedo para trazeres o chapéu rodado com a saia de flores, mas a máscara pode te cobrir o tempo nu de uma Primavera perdida.

Julho virá, mas não ainda. Será tanto o corrupio, os sorrisos enrolados em beijos, tanto, tanto o suor e as bebedeiras em vertigem que nem tempo terás para especular a coerência de Agosto. Um Julho de tanto Verão, de tanto sangue quente e chegará a fazer da Primavera Inverno. Não sei, nuca saberei, se trarás contigo o lenço vermelho. Não sei se depois de o sentires ainda serás capaz de o ostentar, mostrá-lo, torná-lo vulnerável pelos olhos - porque os olhos rasgam e mancham de negro (Julho não poderia ser este tudo para toda a gente). Seja como for, quer o uses ou não, Julho virá, mas não ainda.

Julho virá e ai vais ter que limpar a lareira para eu poder dormir a sesta fresca na cozinha fresca. Porei meu lenço vermelho e a boina ao xadrez castanho. Tu não te esqueças da saia, e o Verão que não se esqueça do ondular do trigo.

A saia, trá-la verde de esperança, verde dos montes da aldeia que te ouviu também a voz em Janeiro, trá-la verde para que nunca te esqueças que depois de Agosto vem Setembro, que depois do sal vem o mar, que depois de negro vem azul, e sempre, sempre o vermelho do lenço repousado no pescoço- para que as histórias nunca se partam na garganta.

*escrita a quatro mãos, dois pontos finais, Celi M. e SA.

3 Comentários:

Blogger styska disse...

eu queria comentar, a sério que queria!...

9:30 da tarde  
Blogger Ana Maria de Vasconcelos disse...

Acho admirável como vocês os dois conseguem escrever de uma forma tão harmoniosa, que se complementa, de uma forma que prende a atenção e nos faz sentir o próprio coração a bater, de uma forma que nos transporta para algum lado inebriados pelas vossas palavras. A cadência dos meses, o sal das lágrimas, o vermelho do lenço.

Vocês cativam!

SA. tens deixado muita saudade.
Tu, ó M., já sabes o que penso. Tudo o que escreves, é sempre pouco para mim.

Um aplauso para os dois, de pé!

(há assim um outro mundo escrito a 4 mãos que anda um pouco abandonado e do qual eu, a fã numero um, ando com muitas saudades)

9:33 da tarde  
Blogger Gui disse...

ali em cima, c'est moi. Tava com o login da minha mãe...

( ainda tenho de te contar porque é que o nome dela do blogger é cosupe)

9:35 da tarde  

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