sábado, fevereiro 26, 2005

Prólogo

Sou arrancado do sono quente em que repousava por baterias desenfreadas que vêm do despertador. Sento-me na cama e conto os buracos da parede. Todos os dias espero que haja um novo, um que me transporte para outro mundo, para longe de tudo isto. Saio de casa e desço as escadas que me levam ao Rés-do-chão saltando de patamar em patamar. Abro a porta do prédio e estaco com a visão do nevoeiro que me impede de ver para além da rua. Acabo por caminhar lado a lado com a cortina branca até à praceta que ornamenta o final da minha rua. Rasgo pelo seu meu para chegar à paragem do autocarro.
Passo os olhos por cada um dos meus companheiros de viagem, claramente impacientes por ainda não os terem levado dali. “Deve estar a chegar” murmuro para o ar à minha frente me ouvir. Aproveito para me arranjar. Aperto os cordões e passo os dedos pelos olhos à procura de remelas.
O tão desejado autocarro chega por fim e inicia-se a procissão de entrada. Levanto a cabeça na esperança de ver o meu lugar livre. Mas não. Alguém já se apoderou dele. O ocupante é um daqueles pseudo-intelectuais que se cultiva a ver alternadamente o canal história e a ler Eça. Criatura desprezável tomou o lugar sem se quer ter a noção do trono em que se sentava. Lança-me um sorriso perverso de desprezo. Viro-lhe a cara e encontro à minha frente o meu reflexo a percorrer as paredes da rua por onde circulamos. Olho-o nos olhos e vejo um adulto que ainda não acordou nem cresceu o suficiente para ser adulto.
-Não sou adulto, tu é que me obrigas a ser, obrigas-me a fingir que já tenho responsabilidades, que já tenho vontade própria. Mas não tenho. Se tivesse seria criança. - Diz-me ele. Não lhe respondo. Não lhe posso responder porque sou eu quem faço as perguntas.
Chego ao fim do percurso com a ansiedade inerente. Caminho rapidamente contorcendo-me para me desviar dos obstáculos que vêm de encontro a mim. Tentam derrubar-me tentam impedir-me de chegar ao meu destino, mas eu escapo com pequenas colisões que me fazem distribuir desculpas a torto e a direito.
Ergo-me agora em frente da magnífica fachada da estação de comboio, mas invisível aos olhos dos que nela penetram a velocidade de cruzeiro. Eu reduzo a minha para reparar naquele monumento. Não que eu nunca tenha passado aqui, só que desta vez que nele entro o receio do destino da viagem torna-me nostálgico e faz-me delinear cada recanto de pedra que esconde os horrendos meios que nos levarão para longe.
Compro a passagem sem ainda saber a exactidão do meu destino. Utilizo a meia hora de espera para me arranjar na casa de banho. Componho a roupa e arranjo o cabelo. Acidentalmente fico com o olhar preso nos olhos do meu reflexo. Não tenho coragem para o encarar e no entanto fico imobilizado a ver-me. Vejo-me taciturno, os lábios enrolados numa expressão triste. Sorrio amargamente na tentativa de fazer uma cara alegre. Mas a minha falsa alegria leva-me ao choro. Lágrimas frias percorrem a minha quente numa tentativa de a esfriar. Torno o processo mais rápido passando a cara por água limpando o vestígio das lágrimas e não mais ponho os olhos no amargo reflexo. Saio para o átrio passando os olhos pela multidão que desagua vinda do comboio que acabou de chegar. Gostava de pertencer aquela multidão que chega em vez de partir, mas não. Náuseas de lágrimas sobem-me aos olhos mas eu luto por mantê-las dentro. O placar informa-me do comboio que devo apanhar e acabo lá dentro sentado à espera da indesejada viagem.
O comboio inicialmente salpicado de gente vai-se enchendo. À medida que cada um entra vou organizando-os na minha cabeça segundo categorias nada convencionais. Organizo-os sem ter noção que o faço. Mas eu mudo as minhas atitudes para cada grupo difenrente. Sorrio à velhinha que se senta à minha frente mas olho com desprezo o homem de de cachimbo que se senta no lugar paralelo ao meu. Vou-me acomodando ao lugar pondo os poucos objectos que me acompanham cuidadosamente dispostos à minha volta .
Então ela chega. Mal o seu enorme corpo transpõe a entrada da carruagem sinto o seu bafo espalhar-se. A custo vai arrastando os seus imensos membros através da carruagem fazendo agitar tudo à sua volta. Quanto mais ela progride na minha direcção mais o meu coração ressalva de medo. Olho pela janela desinteressadamente fingindo interessar-me nos passageiros que se apressam a entram no comboio. Quero gritar-lhes. Quero avisa-los para que não entrem, para que não me acompanhem nesta viagem. O imenso reflexo aproxima-se cada vez mais de mim mesmo com a minha indiferença. Ignorando toda a minha repugnância, o monstro cai a meu lado tomando a minha vida patética como companhia. Fico paralisado com o terror durante alguns segundos, enquanto ela vai espalhando o conteúdo dos seus alforges pelas redondezas. O cheiro quente e pegajoso de fritar peixe num dia de verão entra-me pelas narinas tentando asfixiar-me. O medo transforma-se em vómito. O comboio arranca. À medida que vai ganhando velocidade sinto o meu estômago rodopiar num crescendo até à boca. Colo a cara ao vidro olhando fixamente para a paisagem escura que o túnel me oferece. E nesse escuro me escondo procurando ignorar a cada vez mais horrível viagem. Vejo-me agora num dilema, desejo que a viagem acabe para que acabe este suplicio. Mas receio o seu fim, pelo sitio para onde me leva.O túnel acaba e o escuro expulsa-me do seu seio para o mundo frio. Entre tantos rostos só consigo ver aqueles cujas caras reflectem a minha alma. Vejo solitários precisando de carinho. Vejo lagrimas quentes guardadas no interior de olhos que ardem. Vejo a amargura de um quotidiano que não realiza. Vejo todas as tristezas menos a minha. Sofro com cada uma, e com cada uma me vou afundando na minha tristeza única. Quero esquecer e esqueço. Esqueço que faço esta malfadada viagem, esqueço para onde me leva. Esqueço o que me acompanha, esqueço-me de pestanejar e com a secura dos olhos o mundo transfigura-se para um negativo de fotografia. Tudo o que era preto é agora branco, tudo muda, só o cinzento é que não. È como na vida. Tudo muda para aqueles qu passam da alegria branca da luz para a escuridão negra do sofrimento. Para aqueles que tem uma existencia cinzenta nada muda. Tudo se mantém cinzento. Por momentos desejo ser cinzento. Desejo não sentir o fulgor da felicidade para que não sofra com a tristeza. De manter tnato tempo os olhos noutro mundo, choram-se e o meu coração entra em actividade para se extinguir num impenetravel silêncio de pedra, tal como um vulcão. Só que eu choro, e chorar lembra-me de tudo outra vez.
O comboio viaja agora a grande velocidade sem ligar à força que imprimo no meu punho. A custo tento parar o comboio para que me deixe sair. Mas a verdade é que mesmo que saísse teria que voltar a entrar e a passar pela dolorosa experiencia outra vez. O que eu desejo mesmo é que a viagem não acabe.
A minha nítida vulnerabilidade é captada pelo monstro que num movimento lento roda a cabeça na minha direcção. Não a encaro, mas sinto na face o seu olhar quente. Enquanto ela se degladia com a vontade de arrancar a cabeça por tamanha insulência, um rubor vindo do estômago sobe-me à cabeça e instala-se na face. Não é a vergonha que me cobre o rosto apenas um medo encarnado. Medo do fim, medo da viagem.
O medo leva-me e durante largos minutos não mais ligo ao cenário. Só já vejo personagens. Entram e saiem sem uma frase, sem uma linha sem uma única deixa. Mas Dizem-me mais que em qualquer novela ou peça de teatro. Dizem-me tudo. Contam-me tudo. Contam-me as suas vidas, as suas tristezas e dissabores, as suas alegrias e felicidades. Tudo me contam sem pronunciar uma letra. Falam-me de histórias e lugares que não são os meus. Falam sem nunca falar.
Vão entrando e saindo pelos lados mas o publico não lhes bate ainda palmas. Baterá no fim da peça. Quando as personagens estão já debruçadas sobre si mesmas numa vénia de humilhação. Só na vénia da morte as pessoas recebem os aplausos, mas nunca os chegam a ouvir de tão curvados que estão.
A viagem vai já a meio. Quem mo diz é uma velhota que fala para a simpática jovem que a acompanha. Meio de quê não o sei. Do tempo? Do percurso? Do sofrimento? Do desespero? Só a meio. Outro tanto falta seja ele para o mal ou para o bem.
Num crescendo de inquetação o monstro a meu lado vai procurando à sua volta os seus haveres. Já chegou a sua hora. Gemendo e estrebuchando levanta-se e num ultimo golpe de misericordia atira-me um boa viagem para o colo. Sorrio mecanicamente e vislumbro a boa viagem que me falta fazer. Não é esta. A boa é a do sentido contrário. Mas é esta que me leva e é nela que eu tenho que ir .
Eis que vejo chegar a minha hora. Enquanto arrumo as coisas que desarrumei para não usar, olho uma última vez para o público. Levanto-me com os olhos postos no chão para não me desviar do meu caminho.
Com o último solavanco encosto-me à porta e ela foge deixando-me cair para a estação cheia de inquietação. Ainda não é a última paragem. Nem sei qual será. Mais uma vez vou atravessando a estação pelo meio de obstáculos que fazem tudo para me parar.Com a agitação da travessia cometo o erro terrível de baixar as defesas.
Do nada surge o punho macio e delicado que me atinge no nariz com uma força tremenda. Fico imóvel no meio do turbilhão de gente mas o meu espírito caiu redondo no chão. Fiz tudo para evitar trazer a memória dela à tona. Mas a estranha veio passar por mim carregando o seu perfume que me atingiu inesperadamente. Os meus receios tornam-se agora realidade. Quero deitar tudo a perder. Largar tudo e voltar para ela. Deixar a estúpida viagem por ela. Mas não posso. Não devo, não o vou fazer.
O regresso não está nas opções. Retomo o caminho e dirijo-me à casa de banho com o inferno em que se tornou o meu corpo. Entro na casa de banho e encosto-me à porta procurando vida no espaço putrefacto. Não há vida. Sentindo-me liberto de todas as correias sociais o inferno interior transborda para cá para fora e torno-me no monstro que não sou. Em cada azulejo sujo imprimo a minha força com violência desnecessária. Pontapeio cada porta, cada lavatório, cada objecto. Odeio tudo à minha volta e odeio-me a mim mesmo como complemento.
Com a entrada de um homem as chamas são apagadas. Mas é já demasiado tarde, tudo já está destruído. Já não há nada para salvar. O meu corpo já não passa de um amontoado de cinzas.
Agarrando nas cinzas com a mão, não olhando ao que se perde, enfio-as no saco e saio cá para fora. A dor de fazer tudo o que eu não quero vai latejando à medida que procuro a saída da estação. Paro na saída para lembrar-me das indicações para encontrar a camioneta. Percorro as ruas labirínticas sem notar a mínima diferença entre elas. A cada passo que dou vou-me sentindo mais perdido. Não por não saber onde estou, mas por saber onde estou, e saber para onde vou. Chego finalmente à paragem, não há nenhuma indicação escrita mas a densidade de gente e as suas atitudes dão-me toda a informação que preciso. Mais uma vez é-me imposta a sua memória, desta vez por meio de um casal apaixonado que se beija desenfreadamente. Já não produz qualquer efeito. A lenha dentro de mim ardeu há pouco tempo e está ainda muito verde, também a prevenção não deixa passar uma fagulha que seja.
Sento-me num vaso de dimensões exageradas e nele enterro as minhas raízes. Vasculho os meus haveres procurando a caixa da perdição. Retiro um cigarro e encho-me de fumo num suicídio controlado e pouco agressivo. Usando o fumo como cortina vou observando o cenário que me rodeia. Vejo um mundo frio sem vontade de viver mas cravejado de vidas indesejáveis.
De súbito um rumor avisa-me que a camioneta acaba de virar a esquina. Espero que ela venha morrer a meus pés, para nela depositar os meus haveres. Subo depois para o palanquim sem olhar minimamente para os outros passageiros, fecho as cortinas para que ninguém me veja e fecho-me dentro de mim. Recolhido no meu interior observo as brasas do fogo que me consome para que não fique muito agitado. Com o pau torto da imaginação vou afastando as brasas para que não fiquem demasiado quentes. Durante toda a viagem vou vigiando o fogo e não presto atenção a nada mais. Levo os olhos fechados para que nada me perturbe e ninguém me incomode. De quando em vez sinto o ar mover-se com os passageiros que vão entrando e saindo, mas faço-me de adormecido para não ver ninguém. Nesta fase da viagem já não quero ver quem me acompanha. Agora já não viajam curiosos e domingueiros. Já só os amaldiçoados tomam o caminho final. E por respeito pela dor de cada um já ninguém fala, ninguém se olha, apenas o remoer do motor e a rádio local desinteressada nos acompanha. Mas ninguém os ouve, toda a gente está a velar o seu fogo para que não arda demasiado.
Agora que já estou perto abro os olhos em cada paragem para ver se me toca a mim sair. De cada vez que sinto a inércia puxar-me com a travagem o meu coração aperta-se. Aperta-se de dor por ver sair mais um. Aperta-se de ansiedade por ver a viagem terminar. Aperta-se com o receio da chegada.
O sol vai caindo através das sucessivas paragens e é já fim de tarde.
Delicadas mãos vêm puxar-me para a frente e eu abro os olhos em reflexo. Voltamos a parar, mas desta vez sou eu. Quero pôr-me de pé mas não consigo. Desço as escadas arrastando-me com as mãos e quando chego ao fim atiram-me com a trouxa para cima. Vejo a camioneta fugir com os seus passageiros a voltarem a fechar os olhos.
Olho a toda a volta e reconheço o cenário. O largo da aldeia. Em segundos o esboço o mapa na minha cabeça e traço o itinerário. Começo a andar e alterno o meu olhar entre o chão de paralelos e o céu laranja de fim de tarde. Subo ruas atrás de ruas. Não as subo escalo-as. Cada uma mais íngreme do que a outra, até ao pico inatingível. Vou subindo até o ar estar tão rarefeito que mal respiro, até sentir os meus músculos arderem com a falta de oxigénio, vou subindo até me arrastar com a bagagem por caminhos que já nem chão tem até chegar ao portão.
Ergue-se diante de mim numa imponência diminuidora. Eu estou ainda ofegante da viagem mas seguro a respiração em respeito. Retiro do bolso o molho de chaves e vou experimentando cada uma cuidadosamente. Finalmente uma delas acaba por rodar a custo e ele deixa-me passar.
Cheguei. Mas a tormenta não acabou. Muito pelo contrário. Acabou de começar.