quarta-feira, novembro 12, 2008

Em quadros redondos

Espalhar as palavras na cabeça para que possam encontrar o seu lugar.
Amor fica em Amor. Poema arruma-se em tudo.
Tudo se arruma no papel de caneta e sangue na mão.
Já fui demente, hoje sou convencido e escritor.
Fotógrafo de máquina quebrada de vidros espalhados nos dedos.
Pintor de tintas diluídas, monocromático de cores explicadas,
de formas desmontáveis a cada medida de pincel.
Pinto em quadros redondos como um círculo. Como um ciclo.
Como um ciclo no qual o vermelho e o negro vem lavar os meus pincéis.
Pincéis cansados de bater no teclado,
pincéis duros e velhos de se empoleirarem num copo.
Hoje esqueci-me de pintar como o mar. Lânguido e fluido.
Hoje sou rocha, hoje sou duro e curto, hoje as frases caem no chão.
Pianista de teclas alfabéticas e do mesmo som.
Compositor de frases pouco melodiosas e duramente silenciosas.
Eu! Eu! De olhos cravados no mundo para o dar de mim.
De coração mastigado e engolido. De sorriso sincero e perdido.
Escrevo um círculo quadrado onde pinto poesia em prosa.

quinta-feira, novembro 06, 2008

Wise Up

Os olhos abriram-se num esforço que quebrou pestanas. Ela sentiu uma agitação imensa no seu quarto banhado por uma estranha claridade. O quarto parecia pintado de luz e os seus olhos queixavam-se disso mesmo. Agradeceu mentalmente à sombra do que parecia a sua mãe que se encavalitava junto á sua face. Ela parecia sorrir mas com uma expressão triste. Ela fez um esforço para sorrir mas a sua cara parecia dormente. Há quanto tempo estaria a dormir?
-Doçura? Consegues ouvir a mãe?
Tentou falar mas tudo o que lhe saiu foi um gemido que se parecia levemente com um sim. Como uma pequena bala esbatida a sua palavra deitou a mãe por terra e soou no ar o intenso soluçar de um choro. Que teria acontecido para a mãe estar a chorar? Os seus avós haviam morrido muito antes de Kate nascer. E pareciam ter levado as lágrimas da filha com eles. A mãe raramente chorava e o intenso movimento da cabeça dela sobre o colo de Kate parecia declarar o momento como solene.
O seu pai erguia-se solene contíguo á janela como a definir uma margem. A sua cara antecipava algum sofrimento e mais alguma coisa que Kate não conseguiu descortinar por entre a névoa que ainda lhe habitava as pupilas. Kate semi-cerrou os olhos para ver melhor a última memória antes de dormir. Festa. Tinha saído. Devia ser domingo porque a última lembrança que tinha era de uma madrugada bem bedida e dançanda na discoteca acompanhada das suas amigas. Kate ainda não tinha idade para beber nos seus menores 19 anos mas a maquilhagem e a sua beleza natural ajudavam a que ninguém lhe pedisse a falsa identificação que levava sempre consigo. Lembrava-se de estilhaçar um copo de vodka com sumo de maracujá no chão de azulejos pretos. Azulejos brancos pareciam forrar-lhe o quarto com toda a luz que as paredes emanavam. Viu o pai baixar a cabeça e abandonar o quarto de telemóvel na mão. Ficou admirada ao perceber que o pai estava em casa. Ao domingo de manhã ia sempre caçar com os amigos. Não que ela aprovasse tal actividade mas estranhou a presença do pai a um domingo.
Fez um esforço para se levantar mas ao mesmo tempo o conforto do quentinho da cama banhada pelo sol rapidamente a remeteu a um novo fechar de olhos encetando um novo sono.
Quando acordou de novo o sol já ia baixo. Os olhos abriram-se com novo custo apesar de a luz já cair lenta sobre o quarto. Agora que a luz não a enganava viu que as paredes cobriam-se com azulejos brancos havia uma serie de aparelhos à sua volta. Aos seu pés numa cadeira onde a mãe dormia sobre as suas mãos alvas apoiadas nos joelhos. O quarto guardava uma calma confirmada pelo enorme chorão que afagava o vento na rua.
Estava no hospital. Agora percebia as lágrimas da mãe. Reclamando pesadamente a sua cabeça funcionava agora ao ritmo normal. Tentou perceber porque estava ali. A sua última memória era a da discoteca onde todas as semanas espalhava a dança e a alegria com as suas amigas. Teria bebido de tal forma que precisara de ser desintoxicada? Provavelmente. Os pais não a iam deixar sair mais este mês.
«Bummer!» pensou Kate. Levou a mão à cabeça para coçar a intensa comichão que a atormentava. Havia uma ligadura na cabeça. «Uma ligadura na cabeça?» Provavelmente tinha batido com a cabeça aquando da sua inconsciência. Já tinha visto Sarah torcer um pé da mesma forma. Procurou os seus tornozelos para se certificar que estavam de boa saúde mas a cabeça rapidamente impediu o seu desejo respondendo com latejar à sua tentativa de alcançar alguma coisa abaixo da cintura. Ressaca. Kate conhecia bem os sintomas de uma boa ressaca. Mas a cor do por do sol parecia avisa-la de que o aperto no peito era mais que um mero sintoma.
-Mãe? chamou Kate sentindo uma ponta de egoísmo ao chamar a mãe de um merecido sono. Devia ter passado a noite em branco.
- Kate? Estás bem doçura?
-Dói-me a cabeça. - respondeu Kate apercebendo-se da lixa que se tinha tornado a sua garganta.
A mão levantou-se e sentou-se de lado na cama dela. Duas lágrimas seguiam a alta velocidade pela cara da sua mãe a baixo.
- Querida tu tiveste um acidente. - A cara de Kate abriu-se o possível com a surpresa de um novo dado algo chocante.
-Acidente?
-Tu estavas a conduzir...- a voz da mãe desfez em mais lágrimas de cristal que lhe iam arrastando o que ainda restava da maquilhagem - e tinhas bebido...
O coração de Kate acelerou a fundo abastecido com o que a mãe lhe dizia. «Merda! Um mês de castigo.»
- Doçura, tu... - de novo a interferência aguda na voz - tu não vais poder...
«Sair durante os próximos 20 anos» apontou mentalmente Kate
-Tu não vais poder andar Kate.
Uma bomba explodiu no centro do seu peito naquele instante. As suas mãos perderam as forças naquele instante. Toda ela perdeu as forças. O sol veio de novo clarear todo o quarto e as suas pálpebras não tiveram outro remédio senão fecharem-se.
Três dias depois Kate sentava-se no sofá da sala com a mãe e a lareira a crepitar. A mãe agarrava-lhe as mãos e conversava num tom calmo com ela. O pai ainda não lhe falava nem falaria por um ano. Kate baixou a cabeça e deixou baixar um mar dos olhos durante umas horas. Nascia ali o mar que a afogaria durante todas as noites durante anos. A mãe acabava de lhe dizer que devido ao álcool que carregava tinha conduzido do lado errado da estrada tendo embatido frontalmente num monovolume que levava uma mãe e uma filha de volta a casa. O mar nunca secaria.

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