domingo, setembro 24, 2006

Voar III

Poucas horas depois de se ter deitado a mão veio bater-lhe na porta obrigando-o a levantar-se. Mal dormira a noite toda e isso fazia-se notar nas grandes olheiras que lhe rodeavam os olhos. Os bocejos sucediam-se enquanto se dirigia à casa de banho tentando não bater contra as paredes. Com o cabelo ainda a pingar sentou-se à mesa enquanto a mãe rapidamente lhe pousou duas torradas no prato.
- Despacha-te ou vais perder o autocarro. -Disse a mãe enquanto se preocupava agora com o seu pequeno-almoço. Ele muito rapidamente devorou as torradas empurrando-as com o iogurte líquido. Ainda a mãe não tinha acabado todas as suas recomendações do dia já ele tinha saído porta fora. Teve de correr como se fosse uma medalha de ouro que o esperasse e não o velho autocarro que por pouco não perdeu. Sentou-se no banco enquanto fitava a janela. O que via na realidade era a cara dela. O sono que lhe fechava agora os olhos era culpa da beleza dela que tinha passado toda a noite a admirar. Deixou-se ficar no estado meio adormecido sem reparar que no vidro algumas pingas se iam acomodando na viagem. Por fim o autocarro chegou ao destino e ele saltou ainda meio a dormir. Desceu então a rua sempre encostado aos prédios que se erguiam contra a chuva e só parou quando viu o pequeno edifício castanho. Entrou ainda ensonado e dando os bons dias ao patrão foi de imediato buscar as coisas para limpar a loja antes que o patrão lhe atirasse com o olhar de novo. Depois de aberta a porta sentou-se no banco que o balcão escondia e iniciou a longa actividade de esperar quem nunca vinha.
Quando finalmente a porta se voltou a fechar, desta vez atrás dele, ele correu para as traseiras do prédio castanho. Sentou-se numa caixa de cartão que cedeu ao seu peso. Mas ele olhava já o céu. Sempre atento à espera que o seu cabelo negro viesse a cortar o céu. Enquanto olhava o céu azul e o tempo passava pensou como tudo se tinha passado, e como seria se não se tivessem um ao outro. Enquanto pensava isto um barulho ao seu lado assustou-o, e com o seu movimento assustado a caixa cedeu e ele caiu desamparado no chão. Ao olhar para cima viu o sorriso que lhe era tão familiar olhar para ele.
-Eu sabia que te derretias por mim mas não era preciso tanto - disse ela enquanto ajudava a subir de encontro à sua boca. Enquanto se beijavam ele sentiu o peito encher-se amansar de novo depois do ardor que lhe deixou o susto. -Vamos? - perguntou ela dando-lhe a mão. E com o acenar da cabeça correram ambos até não passarem de duas estrelas no céu que começava a anoitecer.

domingo, setembro 17, 2006

A Dama

Por aí te encontrei perdida na minha visão. Olhei-te e e o olhar nos tornou cúmplices num mundo estranho onde nos agitávamos. Vi-te nos olhos o calor do riso, no traço o cheiro da minha nação. Peguei-te na mão e dançamos, dançamos em silêncio, ouvindo o som dos nossos corpos ondulando pelo ar. Depois a tua presença ausentou-se da minha mão, afastou-se do meu corpo mas não da minha lembrança. Dancei ainda com outro som colado ao tímpano vermelho. Ainda que sozinho era o teu vestido que ondulava à minha volta. E voltaste, e com os olhos jogamos de novo o velho jogo da sedução, largando sorrisos e provocações, puxando à distância um qualquer sentimento. Lembro o teu calor, o teu passo inquieto, o teu sorriso estridente. Sem compromissos, sem medo de existir, porque não existia nada além desta dança que ainda me percorre o corpo. Os teus olhos marcaram-me na escuridão como se tivesse passado horas olhando a chama de uma vela. A arderes-me nos olhos, a arderes-me no sorriso. Uma pressa, daquelas pressas de agir, de ir até ti, de te falar. Mas não podiamos falar, não podiamos quebrar o silêncio que nos habitava e que aumentava o som dos nossos próprios corações marcando o tempo da dança dos olhares. Mas já não sei esse tempo, sei que foram crescendo com a lua durante esses dia. Do olhar fugidio e casual passamos ao longo e paciente. Até estarmos tanto tempo a olhar um para o outro que que o sorriso explodia-nos nas caras ofuscando tudo à volta. E depois olhávamos à volta e riamos com qualquer situação como livrando a culpa da explosão de alegria mas sempre jogando com o olhar. E o teu nome, o teu nome perdido no mar de gente. Eu perdido nos teus olhos. Claros, como uma manhã de Agosto sobre os campos dourados. E nos teus olhos guardo ainda uma dança mais, em que a tua mão se aperte como uma àrvore na minha, em que a tua cabeça descance no meu ombro, em que o teu expirar me acalente o coração.

sábado, setembro 16, 2006

Palavra

Primeiro aquele negro que por vezes parece branco e que enoja pela sua falta de identidade. Depois a luz, fios de luz que se afastam e por vezes veem direitos ao chão. Então o barulho, aquele barulho ensurdecedor, e tão doloroso como o abrir de uma arca de recordações. A trovoada. Habitava nesse dia o céu da pintura que a tua janela segurava. Tu sepultada na cama, com meio lençol cobrindo-te o corpo. Era a fase de transição do dia para a noite que desde sempre odiaste. Então quando ai fechada nesse quarto, passaste a odia-la muito mais. Na tua barriga ainda a costura que te fazia prisioneira. Passavas-lhe a mão incessantemente como que desejando que voltasse o que te haviam tirado. Não que fosse importante mas agora estavas presa num quarto como nunca estiveras e essa semana e 3 dias mudou-te para sempre. Quando te encontrei depois, o sabor amargo da tua boca gritava-me que algo não estava bem. Mas eu segui, tomei-o como normal, tomei-o como mazelas do teu cativeiro. E depois o sabor começou a toldar as palavras, começaram a sair amargas, quase negras da tua boca alva. Até que nunca mais te vestiste. Adorava ver-te assim, a vestir-te. A tornares-te na mulher que o mundo via. E com que cuidado o fazias. Um cirugiao colocando cada peça no seu lugar, cada pedaço formando-te para o mundo. Privaste-me de isso e já não te via a metamorfose. Passaste a ser 2 pessoas diferentes e já não sabia qual delas era a minha. Mas foi nesse dia de céu negro que me disseste a profecia que o destino confirmou. Lembro-me da tua expressão leve e despreocupada, olhando o céu negro mas calmo já. "Acabou" e ao tremer do meu coração a palavra foi verdadeira.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Lar

O mundo ao longe, a alegria por perto. Tudo foi distante, tudo ainda o é. Mas agora há uma distância que me mata e me gela. A luz do teu dia, o calor da tua noite, o dormir das tuas manhãs. Tudo me faz falta, e não é pelo trabalho que agora me cobre, é por não estar em ti. "Já não sei os dias sem ti" disse-o uma vez, e digo-te agora que já não os sei. Sem ti sem eles sem tudo o que me esticava o sorriso por entre o vento árido e quente das tardes de verão. E agora que me vejo sem ti já não sei o que faço aqui. Tudo parece tão sem sentido, tudo parece longe. Mas és tu quem está longe e por isso morro.
Entreguei-me a ti de cabeça, larguei-me em ti sem pensar que o tempo não parava no mundo. Entreguei-te os meus sentimentos e esqueci-me que os beijos precisam deles. Entreguei-te a minha dor olvidando-me que a tua ausência causaria em mim muito mais. Entreguei-te o meu corpo sem me lembrar que o ias estragar desta forma. Entreguei-te os meus olhos fingindo que os podia deixar a olhar para ti eternamente.
E já despojado de tudo que era meu mandas-me assim embora sem que tenha algo para viver, para que eu regresse todos os dias quando a noite te cobrir.
Até logo, meu amor.