Monólogo Desapaixonado nº2
Estou sentado no chão com pedaços do tecto dispostos à minha volta. A casa em ruinas rodeia-me. O telhado deixa a lua entrar sobre mim apenas pa que não me perca no mundo negro à minha volta. Uma janela que agarra teimosamente os vidros deixa-me ver o rio negro por entre a sujidade. Vai correndo silencioso sem lamentar a sua sina, inconsciente do seu fim salgado. Eu, com o sal nos olhos, já não corro com medo que o mar volte a rasgar a minha face. A penumbra que me rodeia dá-me a segurança falsa de a dor me ter abandonado. Ainda iluminada, uma cana dorme a meu lado. Trouxe-a eu da beira-rio onde alguém a largou por a julgar incompetente. Ao tocar-lhe o deseja de a lançar para procurar companhia ataca-me os dedos e ainda a levo atrás para tentar a minha sorte. Mas no momento em que tento lançá-la o meu braço atraiçoa-me e ao ver as cicatrizes a agarrarem o braço deixo-o cair. Trouxe-a por pena. Habituada à alegria que entregava a quem a possuia geme agora baixinho por saber o seu futuro negro. Por isso a depositei a meu lado, para que a luz lhe secasse as mágoas. Consigo ainda ver na outra margem luzes que vão viajando. Mas passam sem me dirigirem o foco por temerem a minha reacção irada. Sorrio. Na espécie de chão onde me sento o pó dança com a lua. Passo-lhe o dedo e as pequenas particulas afastam-se para deixar passar o meu dedo deixando o percurso visível. Desajeitadamente e por brincadeira desenho um coração. Não daqueles como o que trago do peito, mas dos outros, os das histórias de embalar. O sorriso estala num estrondo agudo que faz tremer a janela. Num gesto assustado espalho o pó apagando a memória de tremendo esboço. Atiro-me ao chão perdendo a visão do rio temendo a visão da outra margem. Palpo o chão à minha volta procurando a cana gasta e puxo-a para mim. Adormeço com ela puxando o cobertor negro que a lua deposita sobre mim ao afastar-se.