sexta-feira, fevereiro 06, 2009

200

A chuva já parou de chover, o dia que acorda tarde, ou cedo demais para a minha cama. O gelo cobre a chuva e o dia espera pacientemente nas gotas de água gelada. Os candeeiros mostram a luz já em vão contra o nascimento repetido do astro regente. As vozes ecoam contra o branco vazio da madrugada esquecida. A água corre e lava mais a mente do que o corpo, diluindo o turbilhão. Não é o fim do mundo diz-me Miguel Esteves Cardoso ao ouvido. Sou obrigado a sorrir. É talvez o fim do dia que começa. Uma distracção que surge como um bálsamo, o medicamento que rouba tanto tempo quanto dá. “É melhor fechar os olhos, é melhor fechar os olhos meu amor”. Talvez seja melhor fecha-los agora depois de os ter aberto tarde demais. Talvez estejam já fechados , já não veja nada do que escrevo. Não sei. Amanhã me direi.
*Duzentos. Maior ou menos qualidade, uma aprendizagem constante, desaprendendo constantemente.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Quando eu era mais novo, havia uma coisa muito bonita que era a sedução

EA porta abre-se com uma sineta. Ele tira o casaco molhado e pendura-o num bengaleiro na entrada. Atrás do balcão o empregado prontamente tirou o cachimbo à máquina. Ele caminhou em direcção ao canto e sentou-se na mesa de olhos virados para a porta. O café chegou com o seu aroma a espalhar-se com a humidade. A humidade entrou também pela porta. A sineta fê-lo olhar pela porta e ver uns cabelos loiros que olhavam o guarda-chuva a fechar-se. A iminência do olhar dela fê-lo olhar de novo para o café que fumegava. Deixou cair o açúcar branco contra todo aquele castanho e esperou que ele se afundasse e que ela se sentasse. Pegou na colher e durante os movimentos rotativos vislumbrou-a já sentada junto ao balcão. Olhava para a lista com apetite. Ele olhava-a a ela. Apreciava-lhe a beleza. Os cabelos loiros caiam-lhe na direcção da mesa e alguns escondiam-lhe a testa. A boca de um vermelho pálido. Esticava de vez em quando os lábios como sinal de desaprovação do que lia. Ela subiu a franja com um gesto de cabeça, que como o fumo branco indicava que a sua escolha estava feita. Viu-lhe os olhos pela primeira vez, profundos como o nevoeiro de neve de janeiro. Rapidamente desviu o olhar antes que fosse apanhado. Pousou a colher no pires e levou a chávena à boca. Usando os dedos como escudo infantil, levou de novo os olhos à recém-chegada. Ela olhava o espaço vazio contemplando algo que não estava lá. Enquanto ele deixou cair o café na boca, ela moveu o vazio na direcção dele. Os olhos encontraram-se por pouco que pareceu muito. Como o flash das lâmpadas antes de se fundirem. Ele pousou então a chávena e pela periferia do olhar viu a mesa dela ser ocupada por uma chavena e um prato. Avançando na direcção dela com o olhar pousou na vitrina que ladeava a mesa dela. Viu o seu reflexo enquanto banhava o pacote de chá na sua chávena de café proporções desajeitadas. Enquanto fazia isso olhava para ele. Ele sabia-o, mas ela não sabia que ele o sabia. Como uma dança. Como uma dança foram-se olhando alternadamente enquanto ela esvaziava a sua mesa e ele esvaziava o seu pulmão de fumo. Quando terminou o seu cigarro ele ergueu-se da mesa. Do bolso retirou a moeda que deixou no tampo da mesa. Caminhou na direcção dela. Desta vez de olhar posto nas luvas que tentava calçar. Ela olhava para ele. Ele sabia-o e ela também. Ele desfraldou um sorriso enquanto passava por ela. Saiu para a rua onde a chuva ainda se fazia espalhar pelo vento. Caminhou mais uns metros até ouvir uma campainha. Nesse instante parou.