quarta-feira, dezembro 26, 2007

Conto-lhe o Natal

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Havia estrelas transparentes contra o céu que aquecia levemente as calças pretas de bombazine. Ela como um anjo vestia uma saia que terminava numas botas que lançavam pelinho. Com um olho mais aberto que o outro por causa do sol ele observava tudo isto.
-Se fosse só um raminho não te custava nada. - lançou ela por entre o silêncio perdido na confusão de sons.
Ele baixou rapidamente os olhos mas o coração queimou o ar todo que serviria uma resposta.Os pés dançavam-lhe nervosamente contra a neve de pedra da calçada. Ela olhava para ele e para o seu azevinho. Alternadamente. O vermelho do azevinho parecia reflectir-se na pequena bochecha dele e contrastava com o frio que ela sentia nas mãos demasiado brancas. Tinha-as cerradas como se isso tornasse a sua vontade mais forte e ele lhe desse um bocado de azevinho. -A minha avó esta doente sabes? E eu passo o Natal com ela. Com ela e com os meus pais. Com quem passas tu o Natal?-a face dele escondia-se em vergonha- Deves passar com a tua mãe. Nós somos poucos mas o Natal é fixe assim. Gostas do Natal?- perguntou ela novamente sem resposta verbal mas com uma enorme velocidade das calças de bombazine.
Normalmente ele já teria levado uma canelada e um valente puxão no azevinho seguido de uma corrida de pés pequenos mas frenéticos, mas as bochechas de azevinho eram completadas por umas belissimas folhas verdes nos olhos que faziam derreter o pequeno coração de Sara.
-Olha lá ó cara de azevinho, como é que te chamas mesmo?-atirou ela num pedido em desafio que o coração pedia.
-Eu chamo-me David.... Da-David Félix. - respondeu ele de forma completa após o virar de cara dela fingindo desinteresse.
-Olá David, dás-me um bocadinho do teu azevinho?- o tom mandão parecia ter desvanecido um pouco e as mãos há pouco enroladas em si próprias enrolavam agora o cabelo que não se deixava enrolar estendendo-se até aos ombros.
Desta vez a resposta dele surgiu num lento abanar de cabeça fazendo esvoaçar de novo um não.
-Fogo, porquê?-perguntou ela deixando que toda a impertinência voltasse à sua voz.
Ele, sem nunca tirar os olhos do chão e com o azevinho a queimar-lhe as faces, respondeu num sussurro praticamente inaudivel por entre os pregões a 5 euros:
-Porque se te der tu vais embora e eu fico aqui sozinho outra vez.
Sem pensar muito bem na resposta e a uma velocidade de estrela cadente ela rispostou com um sorriso nos olhos:
-E não!
E então ele olhou-a pela primeira vez desde a sua formal apresentação e pela primeira vez sentiu o peito manchado de vermelho e dourado largando todo um Natal num sorriso de olhos entreabertos e com o sol a iluminar-lhe a felicidade.(continua no Natal!)

quinta-feira, dezembro 06, 2007

Quarto Crescente

O mundo cinzento plana. Sorrisos, conversas, copos que chocam, garrafas em bandejas. Música, música sem dono que se deixa cantar sob a noite. Risos, conversas, discussões. O rectangulo enorme espreme-se contra a parede e vai atirando cores e imagens para a sala apinhada. A sala apinhada tem já mil cores espalhadas nas paredes, assim como mil sons a abafar o ar. Fumo, fumo. Fumo que lhe permite esconder aquela dor que ainda não conseguiu pintar no seu peito. Ainda ou já. Empedrenida e perene. Não sai nem quer. E ela sorri fingindo a sua alegria, farta de ouvir a pergunta em que o bem há muito perdeu o significado. «Está tudo bem!», grita, chora soluça,e as lágrimas. Tudo lá dentro a esncher para despejar em casa. Na varanda com um cigarro ou uma outra personagem. Com o negro do céu ou o esbracejar das plantas. Tudo para casa. Aqui sorriso, riso, conversas. Copos que afogam, lágrimas em garrafas . Sem Música. Sem nada. Um silêncio digno de uma banda sonora. Um silencio que pede acção. Uma acção que pede para ser tomada. Uma felicidade cinzenta que plana mas teima em pousar.


"Se tens medo da dor
vem ver o que é o amor
Se não sabes curar
vem ser o que é amar

Para ver-te amanhecer,
Para ver-te amanhecer,
Quero ver-te amanhecer"
Tiago Bettencourt, O Campo