Domingo
Hoje é domingo. Domingo é dia de família e de igreja. Saio fazendo da música a minha família e das ruas a minha igreja. Tapo os ouvidos do resto do mundo e ouço guitarras e vozes que incitam à melancolia. Caminho com as guitarras e sigo as vozes, recitando rezas de religiões inexistentes. Num domingo ao fim da tarde povoam as ruas os emigrantes de outras cidades, os vagabundos esfomeados por moedas, e os católicos preguiçosos. O que faço eu afinal aqui? Encontro alguém conhecido. Trocamos carícias fúteis e fingimos perguntas interessadas.
-Então o que fazes por aqui? - pergunta-me curiosa, sem saber porém o problemas que causou. O que faço eu aqui afinal? Não regresso a casa, saio dela. Não desejo esmolas nem as peço. Não estou a ir para a igreja. Estarei a passear? Nem pensar, ninguém passeia num domingo de noite. Mas então o que faço?
Desembaraço-me da companhia com uma mentira vulgar. No entanto a questão dela ecoa pela minha cabeça, sem que nada a abafe por resposta. Olho para as montras desejando os tesouros por elas protegidos. Estarei às compras? A hipótese desvanece-se tão depressa como apareceu e sigo viagem. Porque saí eu de casa? Qual o propósito da minha caminhada? Ando e vislumbro as montras, mas desta vez a montra das pessoas que por mim se cruzam. Vejo nas suas caras os produtos que dentro guardam: a solidão, a desilusão, a volta para a vida rotineira, a falta de afectos, a pressa de apanhar aquele autocarro, a morte. Tudo devidamente disposto nos olhos, na forma da boca, nas rugas que contorcem a pele. Procuro neles a resposta à minha pergunta, mas não a encontro. Viro-me para trás e acelero o passo para o autocarro que me leve do meu dilema. Só no ultimo rodar da chave de casa a resposta me encontra, mas é uma resposta meramente consolatória, acalmando a minha agitação sem contundo a resolver. O que fazia eu? Nada, não fazia nada.