segunda-feira, novembro 22, 2004

Domingo

Hoje é domingo. Domingo é dia de família e de igreja. Saio fazendo da música a minha família e das ruas a minha igreja. Tapo os ouvidos do resto do mundo e ouço guitarras e vozes que incitam à melancolia. Caminho com as guitarras e sigo as vozes, recitando rezas de religiões inexistentes. Num domingo ao fim da tarde povoam as ruas os emigrantes de outras cidades, os vagabundos esfomeados por moedas, e os católicos preguiçosos. O que faço eu afinal aqui? Encontro alguém conhecido. Trocamos carícias fúteis e fingimos perguntas interessadas.
-Então o que fazes por aqui? - pergunta-me curiosa, sem saber porém o problemas que causou. O que faço eu aqui afinal? Não regresso a casa, saio dela. Não desejo esmolas nem as peço. Não estou a ir para a igreja. Estarei a passear? Nem pensar, ninguém passeia num domingo de noite. Mas então o que faço?
Desembaraço-me da companhia com uma mentira vulgar. No entanto a questão dela ecoa pela minha cabeça, sem que nada a abafe por resposta. Olho para as montras desejando os tesouros por elas protegidos. Estarei às compras? A hipótese desvanece-se tão depressa como apareceu e sigo viagem. Porque saí eu de casa? Qual o propósito da minha caminhada? Ando e vislumbro as montras, mas desta vez a montra das pessoas que por mim se cruzam. Vejo nas suas caras os produtos que dentro guardam: a solidão, a desilusão, a volta para a vida rotineira, a falta de afectos, a pressa de apanhar aquele autocarro, a morte. Tudo devidamente disposto nos olhos, na forma da boca, nas rugas que contorcem a pele. Procuro neles a resposta à minha pergunta, mas não a encontro. Viro-me para trás e acelero o passo para o autocarro que me leve do meu dilema. Só no ultimo rodar da chave de casa a resposta me encontra, mas é uma resposta meramente consolatória, acalmando a minha agitação sem contundo a resolver. O que fazia eu? Nada, não fazia nada.

domingo, novembro 07, 2004

Noite Livre

Caminho. È de noite e as ruas estão desertas. Devia sentir-me sozinho mas mais do que nunca sinto-me bem. Vislumbrando aquelas ruas que de dia são pisadas incessantemente, que de dia explodem com pregões desesperados, que de dia servem de encosto a sem abrigo mendigando por ajuda, sinto-me bem. Não tenho nem procuro explicação para isso mas sinto-o. A chuva junta-se a mim e passeamos juntos observando-nos mutuamente. Eu observo-a a limpar os desenhos que serpenteiam pela rua fora. Ela observa-me a fechar os olhos e a sorrir de felicidade por aquele momento. É meu. Ninguém verá aquele espectáculo banal aos olhos do mundo mas irrepetível para mim. Mas não há como caminhar no domínio que não nos pertence. Há qualquer coisa de mágico em andar no meio da rua sem que um carro nos importune, uma sensação de liberdade para quem é filho da cidade, para quem lhe é negado desde criança o caminho de asfalto. Liberdade não é a América, não é saltar de um avião, liberdade é poder andar onde sempre nos foi proibido, é poder falar quando sempre nos foi negado.