O cigarro sempre bafejando no ar a sua presença, esticado entre os dedos petrificados na sua mão cálida. Os cabelos loiros sopram-lhe aos ouvidos elogios que fazem a ponta dos lábios esticarem-se como na pintura de um palhaço. Mas a ira é o seu riso.O esticar de lábios a sua frente de batalha. A água parece ferver no longo azul dos seus olhos. As sobrancelhas, outrora esticada sem expressão, fazem aparecer um olho furioso no meio das duas orbes incandescentes. A mão caiu sobre a mesa pondo um ponto de exclamação no fim da sua frase. Rodelas de cinza rolam sobre a toalha e o vermelho de vários olhos apagou-se contra o tecido.Os ombros descaem-lhe a figura para o lado esquerdo onde o braço a segura contra a mesa. No espelho que cobre a parede atrás dela espalham-se as suas costas, até aos ombros decotados. Num movimento de espada a mão dela correu o ar apontando a rua. Como se um avião cruzasse o céu, uma linha de fumo estica-se por cima de nós. Em cima da mesa amontoam-se lenços de papel usados, e um maço de cigarros amarrotado. Os restos desses cigarros rastejam para sair do cinzeiro superpopulado. Nas pontas dos seus lábios forma-se agora residuos de fúria. Eu vejo tudo isto, mas os meus ouvidos fugiram-me com um misto de medo e vergonha. A mão que a apoiava na mesa fechava-se na vertical, como que segurando uma espada. Voltei a correr-lhe os olhos e estes encontraram-me.
Água deixava-se cair ao fundo. Eu batia o fundo de um cigarro contra a mesa. Os nossos olhos voltaram a encontrar-se. A minha face parecia explodir em vergonha. A dela escondia toda a emoção que lhe corria no peito. Sentava-me sozinho junto de um guarda-sol que se empoleirava num velho pneu cheio de cimento. Ela bebia um sumo delicadamente da ponta de uma palhinha. Quando não bebia, o seu rosto erguia-se contra o vento que lhe cortava as faces. Os cabelos negros ainda que abanados pelo vento pareceiam segurar-lhe a cara num tempo de pedra. Tinha os olhos rasgados contra o negro dos cabelos a pintarem-lhe todo o disfarce de esfinge. O vestido branco revelava-lhe um pouco do peito, mas escondia-lhe os ombros. Corriam-lhe a figura os meus olhos mas pareciam fugir-me para os dela cada vez que o seu olhar se mudava. Os meus lábios nervosos esforçavam-se por sair da prisão dos dentes para sorrir de encontro à mesa cada vez que era apanhado na vigia. Sem ver o que olhava fixava a mesa de cabeça baixa até ser seguro.
Baixo a cabeça contra a mesa desarrumada . Pesa –me demais. A voz dela ecoa na sala silenciosa e aparentemente submersa em fumo. A janela mostra-me que lá fora tudo esta adormecido já. A cama esconde-se atrás da porta entreaberta do quarto. Os lençóis contam-me que ela já esteve deitada.Os seus olhos denunciam também o choro que correu por entre as suas faces, mas erguem-se secos na tempestada.Tudo cheira a fumo. A janela fechada como os seus ouvidos. Tudo abafado na cabeça dela. A fúria corre-lhe agora no sangue, expurgando toda a tristeza. Mais uma vez a sua mão desceu sobre o cinzeiro, esfaqueando–o com o que restava do cigarro acabando por matá-lo. As minhas mão revolvem o isqueiro, enquanto a minha cabeça revolve a vontade de pegar num cigarro. As palavras enrolam-se na minha boca e não falo. Não consigo falar. A boca selada pelo peito com um ferro em brasa.
Aclarei a garganta, mas ela nem se mexeu. Nervosamente as minhas mãos revolviam os bolsos procurando moedas de que não tinha necessidade. Dizia alguma coisa e o meu coração acelerava a cada palavra. Parado diante do trono egipcio que parecia envolve-la . A sua face continuava firme no horizonte que outrora me incluia. Senti-me numa audiência. Ela aproximou primeiro os olhos e só então a face se rodou. O sorriso surgiu de forma tão crescente que me pareceu uma flor desabrochando debaixo do seu nariz. O seu sorriso pareceu convidar-me a sentar e assim fiz. Horas depois, dias depois convida-me a sua cama. Não o seu sorriso nem o seu olhar mas as suas palavras de sotaque cravado à sua origem. Acedi sem sorrir. O coração ameaçava tombar-me de culpa. Ardia ainda um cigarro na minha mão que passei aos lábios dela. Os lábios cleopátricos sorriam-me da sua ignorância. Semi-nus, iluminados pela luz doentia de um candeeiro amarelo, deixamos que os corpos se aproximassem magnetizados por um cerebro cego. O peito queimava-me demais. Não sei que combustivel o fazia arder, e ainda hoje não sei. Culpa engrossada e viscosa, ou pura sensualidade alcoolica. Os cabelos negros dela cobriram-me a luz e fechei os olhos como assentindo o que me convidava. Pediu-me que sorrisse.
Peço-lhe que nos vamos deitar. Grita-me algo e acende um cigarro. É terça-feira, amanhã trabalho. Tenho tanto que fazer. As lágrimas surgem vaporizando a sua voz. Gritos enchem de novo o ar. Acabo acendendo um cigarro.
Acendi um cigarro e disse: “Acabou”. Ela chorava, desesperadamente pedindo-me em gemidos algo que não posso dar. A pronuncia dela queimava-me agora a minha garganta. O sentimento de culpa levando a melhor da sua sensualidade. Ela puxando dela recolhe uma madeixa negra atrás da orelha. O pouco comprimento acaba por fazer com que se balance de encontre aos seus olhos negros. Hipnotizo-me uma última vez. Levanto-me e saio pela porta. Vou pelas escadas, o cigarro proibindo-me o elevador.
Ela acaba por me probir as palavras, e sobe-se da cadeira. As lágrimas vão caindo sobre a carpete vermelha. Ela aproxima-se da cozinha e desaparece por trás da parede. Vejo tudo isto lentamente. Não sei se as lágrimas dilatando-me os olhos, dilatam-me também o cérebro.
Tudo é dor e impotência. Estou no sangue a sangrar. No chão, a chorar. Ela chora sobre mim. O revólver já frio na mesa. Matou-me. Há-de fazer 5 anos que a traí. Hoje não. Cheguei tarde, do trabalho. Estou morto. Já não choro, sangro. “É tudo culpa minha” diz ela. Não, é tudo culpa minha.
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