sexta-feira, outubro 19, 2007

Lua Cheia

Corre sobre o pequeno beco uma brisa que faz abanar todas as plantas de pequenas folhas verdes que o luar deixa ver. O cinzento do chão ganha uma alvura fria fazendo lembrar um lago gelado de inverno. Só falta mesmo um banco vermelho de madeira. O cigarro deixa fugir uma coluna de pensamento no ar. O pensamento alheado corre para além do que a vista alcança.nos olhos o reflexo do luar faz brilhar o que o coração rebente. Já não habita o inverno no peito. Antes o verão. Mas um verão chuvoso e húmido. Hoje os olhos secam-se a tempo do útlimo cigarro, antes de irem descançar na branca almofada do sono. Amanhã ainda haverá luar. E a luz do luar consegue sempre apaziguar o fogo negro da distância. A lua traz a plenitude do sorriso, ainda que com lágrimas nas faces.

"Deixa-me existir no espaço novo
Que acordaste em mim
Não vês que é de nós
o jardim que se fez
Não vês que é para nós o jardim
que nos faz em olhares
que este frio faz tremer em ficar
e faz voltar o que tens e que é meu"
Tiago Bettencourt, O Jardim


quarta-feira, outubro 17, 2007

Quarto Minguante

Há um candeeiro que ilumina a secretária onde a um canto se amontoam papeis e fantasmas. Formando um losangulo, os braços estendem-se sobre o tampo deixando o centro preencher-se pela sua cabeça. Os cabelos, da cor do sol, espalham-se em redor à espera de uma brisa que não chega. O único som que se ouve é o dos carros a acorrerem ao circulo lá fora. Há um silêncio bafiento dentro do quarto. Ela abafa o choro para não o interromper. As lágrimas correm velozes atravessando-lhe a pálida cara e caem contra a madeira sem fazerem barulho ao partirem. Há um negro no peito que se espalha até chegar ao dedos em mil fagulhas que queimam e doem. Os pés, cobertos de cores que não habitam a alma enrolam-se com vergonha da diferença. A cara cai para o lado e ela olha o branco da parede. A dor é tão mais pesada quando não se pode apagar. Como a fome é mais doentia quando não se pode comer. Como as mãos doem mais quando não podem acariciar o coração de volta ao nosso peito. Usando o fundo da palma das mãos ela apaga o choro da cara e foge do tampo. Mas da dor não pode fugir, apenas poli-la e faze-la brilhar para que se junte às outras medalhas no peito.


«Se as flores não mudam de cor
vais ter que as deixar viver
Em terra que é feita de nós
toda a chuva daninha de pó
toda a erva que tenta esforçar
vai sempre acabar por morrer»

Tiago Bettencourt, Noite Demais

segunda-feira, outubro 15, 2007

Lua Nova

Há escuro e noite. Há tanta noite. A cegueira habita a visão e o ouvido floresce afinado. O resvalar da água nos seixos e plantas. Quer puxar tudo. Arrancar o mundo para que corra com ela. E quando encontra uma rocha a água ri-se calorosamente lembrando uma criança no verão.
Ao nariz chega o cheiro fresco das folhas castanhas banhadas pelo orvalho. A pesada árvore que as viu nascer range ruidosamente com o vento, mas o som traz o choro de uma mão de negro que vê partir o seu filho.
Sentada no chão agarra entre as mãos uma palha arrancada do chão e com ela sente o vento e tenta mudar-lhe a direcção. Olha somente o polvilhado de estrelas e procura a que lhe pertence. Ao encontra-la começa a desfazer a palha em pequenos instantes e deixa voar o tempo do negrume. Abre então uma pequena caixa prateada que na escuridaão perde o brilho e as palavras. Tira um cigarro e acende-o. É esse o problema palavras. Vem a escuridão e dissolvem-se no vento. Só as acções se gravam. Na pele.

«Desce o tempo e a noite vem lembrar que as tuas mãos também
já nao são de nós para ficar.

Por ser tanto quanto somos
Certo quando vemos
Calmo quando queremos
Hoje, só por ser Outono, vou...»
Tiago Bettencourt, Outono