Manchado de branco
Tenho o estômago entupido, as mãos sujas do carvão. Quero escrever mas não escrevo. Ou melhor, escrevo. Escrevo a cada segundo de solidão, mesmo que não fisicamente as páginas amontoam-se na minha cabeça . Como agora. Mas agora estou só. Nem sempre estou só nos momentos de solidão, e mesmo nesses momentos escrevo, largo dezenas de palavras que me trazem o conforto da escrita ainda que não escreva. Estou a ficar demente.E depois não passo os escritos ao papel ou no ecrã. Sinto-os ridículos, sinto-os velhos, enfadados, repetitivos. Ou então sinto que os iria estragar, torná-los diferentes por quem os irá ler. Não pelas críticas mas pelos sentimentos que exalo. E já nem sei porquê. E já nem me apetece escrever com medo que me leiam, então desenho. Agarro no lápis e com ele afago o papel em movimentos pouco definidos. Mas tudo sai por ele também, acaba tudo marcado no papel. Na mesma página onde escrevo vejo uma figura feminina , que o lápis deixou, estendendo-me a mão. Penso que é o que eu queria ver, e que a única forma de a ver real foi deixá-la viver pelo lápis. Para que penso afinal? Os dedos tremem-me entupidos. Não quero escrever, não quero deixar-me de novo no papel, no ecrã, seja onde for. Porque tenho medo talvez. Medo de que me vejam na plenitude e depois já ninguém me queira ver, porque me vislumbram os podres e os defeitos e já não precisam conhecer-me.Estou a ficar demente. Já tive medo e escrevi na mesma, mas o medo alterou as minhas palavras e acabaram por não dizer tudo. E porque hei-de fizer agora quando sei que não vou ter força para impedir que as palvras se moldem com o medo? E enquanto escrevo sem eu contar a música emana no ar e vem atiçar-me ainda mais. Deita-me ao chão e tortura-me para que diga tudo. E porque resisto. Porque luto contra ela? Porque não grito de uma vez por todas tudo o que não para de sibilar no meu ouvido.
Estou a ficar demente. Porque dói, dói vezes de mais falar, porque até já os suspiros retenho, ou os disfarço em bocejos e tosses. Já nem sei escrever ou falar sequer. Mas quero, e preciso, porque a escrita me faz e me atravessa como um rio e estancá-lo assim sucessivamente vai criando fendas e buracos até que sai assim em jorro e já não o consigo deter. E tudo sai confuso e sem nexo, a caneta corre desenfreadae não consigo que as palavras se amansem ou que os sentimentos não saiam flagrantes. Não porque queira falar-te assim, mas tudo me sai assim e eu já não me sei seguro e não sei se me quero segurar. Falo-te com medo que tenho de te sentir, com medo do que sinto. Não sei o que é, nem lhe quero dar o nome e talvez isso seja pior. O inominável é sempre pior, é sempre maior e mais poderoso. Mas por assim ser tenho medo de o enfrentar agora. Estou a ficar demente. O melhor é contar-te o que sei. Sei que o teu sorriso me deixa perplexo, e que os olhares que sem saber me ofereces me incendeiam o peito. Também sei que as tuas palavras me enchem, seja em discurso directo ou nos devaneios que também tu deixas ao mundo. E por isso te sei tão especial. Porque te soube especial sem ver a tua beleza, porque conheci a tua beleza sem nunca te ver. Porque te soube bela na escuridão e a luz só me trouxe a confirmação. E agora a vergonha já me enche e tu ainda nem me leste. Sei que todas estas palavras te vai deixar desconfortável se perceberes que são para ti, e por isso me sinto egoísta porque procuro o meu conforto sabendo ser o teu desconforto, porque sei que eu ao sentir-me bem a escrever tu te vais sentir mal a ler. Mas já não sei o que fazer, e disse-te já tudo o que sabia.Estou a ficar demente. Digo-te também que o que quer que estas palavras te façam eu vou aceitar humilde e consciente, e continuar a andar assim como a caneta. E mesmo que decidas não mais me ler eu vou continuar a escrever porque tudo se renova.