domingo, abril 30, 2006

Manchado de branco

Tenho o estômago entupido, as mãos sujas do carvão. Quero escrever mas não escrevo. Ou melhor, escrevo. Escrevo a cada segundo de solidão, mesmo que não fisicamente as páginas amontoam-se na minha cabeça . Como agora. Mas agora estou só. Nem sempre estou só nos momentos de solidão, e mesmo nesses momentos escrevo, largo dezenas de palavras que me trazem o conforto da escrita ainda que não escreva. Estou a ficar demente.E depois não passo os escritos ao papel ou no ecrã. Sinto-os ridículos, sinto-os velhos, enfadados, repetitivos. Ou então sinto que os iria estragar, torná-los diferentes por quem os irá ler. Não pelas críticas mas pelos sentimentos que exalo. E já nem sei porquê. E já nem me apetece escrever com medo que me leiam, então desenho. Agarro no lápis e com ele afago o papel em movimentos pouco definidos. Mas tudo sai por ele também, acaba tudo marcado no papel. Na mesma página onde escrevo vejo uma figura feminina , que o lápis deixou, estendendo-me a mão. Penso que é o que eu queria ver, e que a única forma de a ver real foi deixá-la viver pelo lápis. Para que penso afinal? Os dedos tremem-me entupidos. Não quero escrever, não quero deixar-me de novo no papel, no ecrã, seja onde for. Porque tenho medo talvez. Medo de que me vejam na plenitude e depois já ninguém me queira ver, porque me vislumbram os podres e os defeitos e já não precisam conhecer-me.Estou a ficar demente. Já tive medo e escrevi na mesma, mas o medo alterou as minhas palavras e acabaram por não dizer tudo. E porque hei-de fizer agora quando sei que não vou ter força para impedir que as palvras se moldem com o medo? E enquanto escrevo sem eu contar a música emana no ar e vem atiçar-me ainda mais. Deita-me ao chão e tortura-me para que diga tudo. E porque resisto. Porque luto contra ela? Porque não grito de uma vez por todas tudo o que não para de sibilar no meu ouvido.
Estou a ficar demente. Porque dói, dói vezes de mais falar, porque até já os suspiros retenho, ou os disfarço em bocejos e tosses. Já nem sei escrever ou falar sequer. Mas quero, e preciso, porque a escrita me faz e me atravessa como um rio e estancá-lo assim sucessivamente vai criando fendas e buracos até que sai assim em jorro e já não o consigo deter. E tudo sai confuso e sem nexo, a caneta corre desenfreadae não consigo que as palavras se amansem ou que os sentimentos não saiam flagrantes. Não porque queira falar-te assim, mas tudo me sai assim e eu já não me sei seguro e não sei se me quero segurar. Falo-te com medo que tenho de te sentir, com medo do que sinto. Não sei o que é, nem lhe quero dar o nome e talvez isso seja pior. O inominável é sempre pior, é sempre maior e mais poderoso. Mas por assim ser tenho medo de o enfrentar agora. Estou a ficar demente. O melhor é contar-te o que sei. Sei que o teu sorriso me deixa perplexo, e que os olhares que sem saber me ofereces me incendeiam o peito. Também sei que as tuas palavras me enchem, seja em discurso directo ou nos devaneios que também tu deixas ao mundo. E por isso te sei tão especial. Porque te soube especial sem ver a tua beleza, porque conheci a tua beleza sem nunca te ver. Porque te soube bela na escuridão e a luz só me trouxe a confirmação. E agora a vergonha já me enche e tu ainda nem me leste. Sei que todas estas palavras te vai deixar desconfortável se perceberes que são para ti, e por isso me sinto egoísta porque procuro o meu conforto sabendo ser o teu desconforto, porque sei que eu ao sentir-me bem a escrever tu te vais sentir mal a ler. Mas já não sei o que fazer, e disse-te já tudo o que sabia.Estou a ficar demente. Digo-te também que o que quer que estas palavras te façam eu vou aceitar humilde e consciente, e continuar a andar assim como a caneta. E mesmo que decidas não mais me ler eu vou continuar a escrever porque tudo se renova.

quinta-feira, abril 27, 2006

Espelho Negro

A noite, escura sem luar. O negro que envolve como se ligaduras pretas me vestissem. A leveza da neblina a temperar o ar que respiro. Eu sentado. O banco de pedra a marcar nas minhas mãos, aninhadas por baixo das pernas, as mil imperfeições que lhe rasgam a face. Só. Eu e a placidez de um lago que no silêncio reside à minha frente. Olho a água quase sentindo o frio, quase sentindo a tensão de uma força demolidora debaixo de uma calma capa negra. Havia uma fonte a jorrar-lhe vida, mas calei-a para que não me incomodasse. Só este sossego permite que veja através da água, só assim consigo ver o que se esconde por trás das ondulações e reflexos. Assim me deixa vislumbrar cada peixe e cada pedra que se esconde no seu fundo. A neblina acerca-se da minha cara e sinto-a húmida. Penso há quanto tempo uma lágrima não corre pela minha face. A minha fonte também foi calada para que pudesse ver mais nitidamente. Não que ela deixe de correr no meu peito, não que ela deixe de fervilhar na minha cabeça mas não a deixo já toldar-me a vista e impedir-me de ver algo tão bonito como um espelho negro. Um carro passa desenfreado na sua luta contra o espaço e o tempo. Eu baixo a cabeça ainda que irreflectidamente. A minha solidão ainda me envergonha. Ainda não sou capaz de assumir que sei encontrar momentos de felicidade sozinho. Os olhos do mundo ainda não sabem ver que a solidão não é nociva e que a falta de uma pessoa ao lado não impede a viagem. Não, não estou a dizer que devemos procurar o isolamento e assim achar a felicidade, nem que a opção de ser só sobrepõe a do relacionamento, mas ambas devem ser aceites como iguais. Eu não olho com inveja um par de mãos dadas, mas sim com um sorriso. Já se me vêem a mão só atiram-me a pena do alto da sua arrogância.
Olho os nomes gravados dentro de corações na laje do banco onde me sento, e passo os dedos por tão árduo trabalho para provar a felicidade. A nossa busca para a encontrar é tão exaustiva que quando a achamos temos que a apregoar procurando tanto a inveja como a admiração de quem não a tem.
Um pássaro procura já chamar o início do dia com chilreios desmedidos que me doem nos ouvidos. Afago minhas próprias mãos e levanto-me num pulo. A neblina voou já e eu sinto vontade de a seguir. Mas antes hei-de mergulhar-me no lago, nem que só com as mãos através da água parada. Não só para a levar comigo, como para deixar em ondulações a marca da minha passagem.

segunda-feira, abril 24, 2006

Variações em Sol Menor - Tema para guitarra e interlúdio de silêncio

O acorde grave, as cordas grossas que fazem tremer o coração. O dedilhar ora lento ora rápido que me vai agitando.Já não sei o que ouço, já não sei fazer música. Não sei tocar guitarra, nem nunca o soube. Tocava sim com as palavras e as músicas que fazia tocavam nas pessoas. Agora só me parece que tudo o que sei compor são canções do bandido. E irrito-me comigo, vejo-me ridículo, empobrecido de ideias por causa de uma ideia fixa. Já não me lembro se te devo falar na terceira pessoa. Já não sei essa distância mas em breve ma vais relembrar.Ouviamos guitarras sim, eléctricas davam movimento aos nossos corpos. E mexiamo-nos, sorriamos e cantavamos.
Faziamos tudo com a música mas era no silêncio que eu mais existia. Perdido na noite alhei-me da música que ouviamos e fiquei no silêncio perturbador. E no silêncio senti o que não queria. Sem um som via as tuas mãos voarem á minha frente como borboletas irrequietas e agitadiças. E senti, senti-me um caçadr a querer apanhar as tuas mãos, segura-las nas minhas e assim segurar-te a ti também. E no silêncio vi os teus olhos a pousarem nos meus e quis fazer daquele instante único. No silêncio olhei o céu estilhaçado de estrelas fazendo-me acreditar que nem um tolo que era um momento solene. Até que tentei quebrar o silêncio, mas as palavras sairam mudas e sem sentido. Com medo do silêncio tive de me aproximar de ti e segredei-te por entre os cabelos. E o silencio trouxe-me o teu perfume e quis abraçar-te como se fosses já minha.
Até que o medo me encontrou e os graves da guitarra voltaram solenes e compassados fazendo lembrar um filme de terror, ou o drama de um romântico solitário. E continua até agora a tocar essa guitarra trazendo a imagem do créditos finais de um western. Eu vou no cavalo enquanto o sol se põe no horizonte, quando a noite vier talvez tenha que parar para voltar a arrancar as balas que me vão habitar o peito.

sábado, abril 08, 2006

Variações Em Dó Menor - Composição para Piano

Semi-cerro os olhos. Olho só as teclas à minhas frente. Julgo-me pianista, audaz e ausente, faço das letras notas e das palavras acordes. Escrevo esta música sem olhar o escrevo, ouço só o lento esmagar de visões debaixo dos meus dedos. Quero falar-te mas não o posso fazer em discurso directo, já me cansa sempre o tu, sempre tu que nunca é ninguém. Falo dela então, dela 3ª pessoa, porque não posso falar para a segunda, não podes ser a segunda porque nunca seremos 2. Nem um, nem nada do que queria que fossemos. Mas o que é? Não sei e ninguém me explica, orgulho, repetidas tristezas, o gelar das mãos? Porque não te procuro, não! Porque não a procuro? O olhar dela traz-me só um sorriso tão quente. Dissolvido no vento das palavras dela voo, voo com ela de sorriso nos lábios e vontade de ver mundos. O teu mundo, queria encaixar-me no mundo dela, só num cantinho, desde que a sua luz dela me aquece-se mais vezes. As mãos gelam-se ao teu lado eu cubro-as de ligaduras com medo do Midas. Não, não te tornavas em ouro, mas sim ferro, frio, que nunca seria capaz de sentir o calor. Posso descançar a cabeça no teu ombro? Cheirar o teu pescoço? Não não posso, porque tu nãos vais deixar e vou ser vagabundo outra vez. Ela faz-me sentir especial, faz os sinais vermelhos parecem o pôr-do-sol e os buracos lagos perdidos. Posso sorrir pelo menos? É o que vou fazendo, é o que me vai dando alegria, não sei se é por serem migalhas numa fome negra, ou se por ela ser alguém que é tão especial. Haha. Especial! Não é o que dizemos todos os dias ao espelho, na esperança que fosse possivel? Não ser especial, mas ser o que à vezes acreditamos ser um herói colorido no meio do mar cinzento de sentimentos vazios. Vou parar, isto não é um piano e os graves ecoam demais no coração e os agudos fazem doer os dedos. Guardo-os para afagar a cara dela, e hei-de os guardar mesmo que fiquem esquecidos no sótão cheio de pó. E agora shh, que o silêncio também se ouve.