sexta-feira, junho 27, 2008

Good Bye Dollie

Os dedos brancos e afiados. Na ponta negras unhas enchem o ar da languidez do teu olhar. Fumo, muito fumo vai parando sobre ti. O branco redentor do teu sorriso apaga a impressão sombria de toda a tua figura. Foi a sombra que me atraiu. Trazias um isqueiro na mão. Um paralelepípedo que se acendia e apagava fazendo bailar sombras na tua face pálida. O autocarro fazia o teu esqueleto desajeitado dançar na noite silenciosa. Os braços magros ainda carregando a brancura da face. Era o pico do inverno e parecias pertencer à paisagem de neve e esqueletos de arvores que acenavam do lado de lá da janela. Eu olhava-te no reflexo do vidro pintalgado de neve e talvez por isso me parecesses um verdadeiro anjo. Quando a tua paragem chegou balançaste-te entre as metálicas barras que pareciam manter o autocarro inteiro. Passaste por mim e o cheiro das nuvens da primavera passou pela minha nuca, quase fazendo com que me estendesse no banco onde me equilibrava a custo. Tive de me segurar com mais força quando o autocarro resolveu parar. Eu resolvi sair em busca das tuas asas macias. Tu andavas a passos largos sempre desajeitados. A noite cobria-te juntamente com o casaco que te tornava um enorme amontoado de pelo. Só o negro dos teus cabelos se erguia a condizer com a noite polvilhada de pequenas luzes. Lembro-me de um avião rasgar o céu com as luzes vermelhas e brancas. Agora um fio vermelho rasga a o espaço da tua têmpora ao ouvido. O calor deste fim de verão fazia-te mostrar mais dessa pele alva. E nem a ventoinha a rodar permanentemente no tecto apagava as gotas de suor da tua pele. Lembro-me da primeira vez que te beijei. Os tentilhões anunciavam o primeiro verdadeiro dia de sol. Tu anunciavas-me a tua verdadeira sede. Fiz-te limonada com limões de casca grossa e tu uma careta de cara grossa ao sentir-lhe o amargo. Eu beijei-te a testa e os meus lábios clarearam-se contra a tua pele. Não fugiste, nem por instinto. O toque dos meus lábios com a tua pele pareceu congelar o tempo. E a ti. Os teus olhos cerrados. O meu coração a ribombar. Os teus olhos cerram-se também agora e o meu coração ainda não desacelerou. Larguei-te um mesmo beijo na mesma testa na mesma pele. Não escureceste um tom desde o inverno. A tua figura alva pareceu até aumentar o caudal de luz branca, já que com o cair do verão também as tuas roupas foram caindo. Lembro-me de quando vi as marcas negras que te habitavam os pulsos. 2 negras pulseiras junto ao azul das veias. Pareciam dar início as mãos e condiziam com o negro decadente das unhas. Impressas na pele as nódoas negras foram desaparecendo com os meus afagos constantes. Passei a beijar-te os pulsos, passei a beijar o pescoço. Tu passaste a fugir. Não por medo ou para mo negar. Mas sim para me provocar e provocar o inevitável. Hoje também fugiste antes de te estenderes rendida na relva. Esta parecia alegrar-se com a tua presença sombria. O verde da relva parecia colorir os teus braços tornando-os ainda mais pálidos. Tu parecias tornar o mundo mais silencioso. Com os olhos cheios de sol, uma lágrima estende-se sobre a minha cara. Lembro-me de quando Maio te trouxe de novo lágrimas. Era o aniversário da tua mãe e largavas dor por não a teres ao teu lado. Não tinhas culpa. Nada podias ter feito para passares mais um aniversário com ela. Limpei-te uma lágrima com o polegar enquanto os outros dedos se enterraram na tua nuca. Trouxe-te a cabeça para junto do meu beijo e os meus lábios só pararam para exalar o fumo de um cigarro no fim de tudo. Os teus olhos olhavam o ainda inexpressivo tecto mas as lágrimas já não rolavam sobre a tua face. Parecias desenhar o céu a cada volta da ventoinha e foi o que fizeste depois com o verniz preto. Não eram as tuas tintas, mas usaste o verniz negro para serpentear um fumo negro por todo o tecto deixando vários olhos marcados no caminho. Nunca mais fizemos amor nesse quarto. Talvez os olhos me assustassem. Pareciam sempre julgar-me. Olho à minha volta para ver se alguém te julga agora. A relva fica bem escondida atrás da casa, mas a tua lingerie pode atrair olhares mais curiosos. Lembro-me do teu olhar curioso sobre o teu ombro inchado de roupa. Vapor saia da tua boca anunciando o frio normal para esta altura do ano. Eu esfregava as mãos não para afastar o frio mas o embaraço. Seguia atrás de ti de passos inseguros depois de sair do autocarro. O principal medo que surgia na minha cabeça era o dela entrar numa qualquer entrada deixando-me órfão na noite. Tinha que agir depressa e não era tão bom nisso quanto devia. Como agora. Tenha que te levar para dentro antes que a tua pouca roupa chamasse atenção indevida. Agarrando-te nos braços arrasto-te para a casa deixando no verde uma enorme mancha vermelha. Lembrei-me então da primeira vez que te arrastei. Pesavas mais dessa vez. Os meses fechados naquela casa deixaram-te os ossos mais visíveis apesar de eu te ter alimentado bem. Comias pouco e mexias-te muito, mesmo quando as algemas ainda te apertavam os movimentos. Agora moves-te inanimada. Largo-te na cozinha, com o teu sangue ainda a espalhar-se no nosso chão. Abro a porta do armário e tiro um saco preto e a lixívia. Não tinhas que ter fugido. Os teus pais estavam quase a pagar. Era só mais um ou dois dias. E ao mesmo tempo que largo o saco, uma lágrima larga-se no meu rosto. Pode ser que paguem na mesma. E então nem tudo se perdeu.

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quinta-feira, junho 19, 2008

Bife Picado
Ou a receita de um serão bem passado

Pegue-se num espectáculo bem saboroso, pleno de condimentos e já marinado em boa parte dos espectadores. Abra-se um auditório e corte-se tal que fique tão próximo e íntimo como uma pequena sala. Sirva-se a entrada:

Duas luzes, um piano, dois talentosos performers, um fundo negro. As luzes preenchem um espaço rectangular que os performers enchem de início. O piano desfaz-se em mil e uma variações trazendo-nos o sal da saudade, o amargo do fel, o doce algodão doce ou até um fresco refresco de verão. O bailarino traz-nos o verão. Traz-nos o mundo a cada segundo. O piano condimenta a transfiguração permanente dos pés dançantes que tanto voam como uma pomba branca em solo sagrado, como se arrastam pesados em lama negra. Escorrega-se o tempo por entre o interpretativo corpo do bailarino que acompanha com sal do suor cansado a pingos constantes. Quase que cansa o comensal perdido na viagem que não é a sua. Perde-se totalmente no fim com um enorme apetite de mais.

Com os convidados já de saliva curiosa no peito sirva-se então a sopa. Um Pot-Pourri de poesia servida em banco iluminados:

Uma dupla de poetas, 3 pares de bons leitores, um sem fim de poemas bem constituídos. Chegam primeiro as vozes femininas. Espalham na mesa uma boa manada de poemas frescos ainda crus de risos, mas bem areados em sorrisos. Depois o par mais improvável masculino. Bem temperados, depois de bem marinados que resulta num sabor forte e bem apontado à cabeça. Não recomendado a cabeças light. Depois de risos que martelam bem as palavras na parte de trás da cabeça passa-se ao casal. Aqui um aviso maior aos corações light. Palavras de ambos enchem-nos o peito numa torrente sem fim. As palavras além de rápidas e afiadas, querem-se quentes e plenas de sentido. Os olhos tendem a fechar-se e viaja-se num carro de quatro piscas ligados. Ligam-se os quatro piscas dos comensais e o peito bem posto num rosbife mal passado.

Vai então à mesa a sobremesa do almoço. Aproveita-se os pratos em mau estado para espalhar o gelado.

Uma mão cheia de senhoras de idade curta, uma improvável girls band, um palco bem polvilhado de luzes. A música esquece-se que é música e enrola-se muito bem no ambiente de luzes e de vestimentas. As coreografias raladas em finas tiras de humor e as girls bem marinadas em vontade de sátira. As 5 coloridas bolas de gelado servem-se com banana pouco natural e mas sem guarda-chuvinha.

Dá-se então uma tarde solarenga de intervalo. As conversas digerem o almoço, o almoço assenta no estômago improvisado. Depois da ansiedade se sentir nas pontinhas dos dedos abrem-se de novo as portas para novo manjar. Dança flambé.

Um assombroso trio de bailarinos. Um conjunto de roupas improváveis, e um tema que se unta bem no ouvido. A dança desfaz-se bem em palco com poucos movimentos dignos de um tutu. Os bailarinos movem-se para formar sucessivas Polaroid de expressões caricatas e posições metafóricas. Os pés descascados logo de inicio. As cascas improváveis que se vão espalhando. As Polaroid começam a surgir repetidas mas de personagens diferentes. As metáforas começam a ficar menos desfocadas. As Polaroid mais salteadas. O seu conteúdo cada vez menos cru. E as luzes fazem por colorir os bailarinos numa cor que se afigura como um retrato a sépia. E eis que com um golpe de pulso da frigideira, e após mais alguma roupa cair, o comensal vê-se confrontado com o inflamar das Polaroid trazendo a nudez completa um inflamado picante às imagens metaforizadas. O fogo de um constrangimento ou a naturalidade de um flambé anunciado quase que grita nos ouvidos o que já de cedo se ouvia. As Polaroid queimam-se numa escuridão espalhada pela saída dos bailarinos.

De carne ainda inflamada sirva-se o prato principal. Uma salada russa de poemas com um sem fim de ingredientes.

Seis cadeiras de costas, uma Caixa Geral de Despojos, densas luzes, uma floresta por trás. Levantam-se poemas. Larga-se no ar o cheirinho de cada um deles e caem no estômago da alma sem que se dê conta. Quem cozinha cada um deles é de um talento imenso, e cada estilo á único. Sirvam-se palmas para tão boa coordenação cénica, sirvam-se sorrisos quentes a quem preparou tão divino manjar. Há um prato que merece segunda dose:

Pinte primeiro uma gaiola

com a porta aberta.

Em seguida pinte

alguma coisa graciosa,

alguma coisa simples,

alguma coisa bonita,

alguma coisa útil...

ao pássaro.

Depois, coloque a tela contra uma árvore

no jardim,

no bosque

ou na floresta

e esconda-se

atrás da árvore

sem dizer nada, sem se mexer.

Às vezes o pássaro chega logo,

mas pode levar muitos, muitos anos

até se resolver.

Não desanime,

espere.

Espere, se preciso, durante anos.

A velocidade ou a lentidão da chegada

do pássaro, não tem a menor relação

com a qualidade da pintura.

Quando ele chegar

(se chegar)

mantenha o mais profundo silêncio,

espere que ele entre na gaiola.

Depois que entrar,

feche lentamente a porta com o pincel.

Aí então

apague uma por uma todas as varetas.

(Cuidado para não esbarrar em nenhuma pena

do pássaro.)

Finalmente pinte a árvore,

reservando o mais belo de seus ramos

ao pássaro.

Pinte também a verde folhagem e a doçura do

vento,

a poeira do sol,

o rumorejo dos bichinhos da relva no calor da

estação.

Depois aguarde que o pássaro se decida a

cantar.

Se ele não cantar,

mau sinal:

sinal de que o quadro não presta.

Mas bom sinal, se ele canta:

sinal de que você pode assinar o quadro.

Então retire suavemente

uma pena do pássaro

e escreva o seu nome a um canto do quadro.

Jacques Prévert

A sobremesa afigura-se deliciosa. Uma pequena tábua de queijos de produção própria e importação do interprete Tiago Bettencourt. Mostra-se um rockstar que se desdobra em sabores e autores para caber neste jantar. O humor fica ainda sobre a mesa, e ás vezes parece que o fumo forma dupla com o cantor bailando entre as luzes bem provadas.

Um serão bem passado, gostoso e de barriga bem cheia.

quinta-feira, junho 05, 2008

O Chamamento das Sereias

Deixei-te, como sabes, com um beijo e um sorriso no 3º piso do antigo colégio de órfãos na praça Gomes Teixeira. O velho elevador mandou-me de volta à rua e à companhia dos velhos leões que por ora não espalhavam água na fonte. Abri o mundo imaginário no colo e aguardei o vento. Quando veio trouxe consigo o som do velho motor eléctrico que me correu nas costas. Fazendo de mim esquina veio parar pouco adiante do meu banco. Agarrei na trouxa volumosa e segui rumo a ele. Ainda hesitei por alguma vergonha de passear a minha leitura. Mas o guarda-freio convidou-me a entrar e acabei por me sentar à janela que abri prontamente. Os Clérigos passaram despercebidos à medida que me embrenhava mais na leitura. Só me subiu a cabeça quando o eléctrico estacou em plena Batalha. Subi por obrigação para me colocar junto da paragem esperando que o trólei fosse colocado na posição inversa. Mas, de súbito, a Muralha Fernandina pareceu demover-me de retornar à baixa na companhia do livro. Fiz-lhe a vontade e acompanhei-lhe o perfil na velocidade do Funicular dos Guindais. As vertigens que nunca tive permitiram-me deliciar-me com a queda lenta até ao rio. A ponte férrea olhou-me de todo o seu ar altivo apontando-me um carro que me deixou atravessar. De dentro o sorriso que surgiu fez tilintar o sino da felicidade e sorri de volta à minha madrinha. Ainda com o sorriso na face desci até ao Douro onde ele me acenou breves ondas contra as escadas. Acenei de volta e rumei junto do Cubo onde se colam as pombas e se espalham os turistas. Olhei com desdém o S. João e decidi voltar a encontrar-me com o eléctrico. Junto à Igreja de S. Francisco um papel na parede informou-me que não voltaria a ver por ora o meu companheiro de leitura. Carregado com os livros e a roupa que foi caindo com o calor caminhei junto ao rio. Este pintava-se de prata e preto pelo sol enquanto prematuras iluminações coloriam os passeios. Enquanto vislumbrava o nosso Porto estendido sobre a escarpa vi o Palácio da Justiça apontando-me o meu destino. Percebendo que se seguisse o rio o meu destino se afastava olhei de sobremaneira as escadas que se erguiam à minha direita. Depois de parar para hesitar o impulso sobrepôs-se ao receio e acabei por subi-las. 93 contei até que uma deserta viela me mostrou mais um patamar. Mas aí não as contei. A minha atenção espalhara-se numa só direcção. Duas sereias carregavam um palácio que parecia reluzir o meu sorriso.


*Lembro-me de um livro pequeno de capa verde que falava de cipestres no Porto. Lembro-me de duas sereias roubadas com um laser que cortava pedra como se fosse manteiga. Lembro-me da euforia de as descobrir numa noite em que andei perdida por ruas que não eram minhas. Lembro-me da tristeza de não as voltar a encontrar por mais que as procurasse. Lembro a felicidade quando mas devolveste!
Miluji tě

domingo, junho 01, 2008

Once you go you can never go back

O vento agitava-lhe as pequenas madeixas de cabelo que desciam em frente à sua testa. O sol esquentava-lhe o cabelo negro. Do rádio do carro alguém gritava por entre guitarras que estava na auto-estrada para o inferno. As chamas do inferno erguiam-se nos estofos do carro que condiziam com a pintura vermelha do carro. O vazio da capota recolhida parecia espalhar-se por toda a zona envolvente fazendo com que a estrada se equilibrasse no vazio dourado. Pequenos cactos castanhos e carcaças de animais bravios davam pequenos pontos de referência que o carro ultrapassava com grande velocidade. Conseguia ver o seu próprio olhar pelo retrovisor empoleirado em dois dados peludos. O sorriso quente não se via mas sentia-o bem a esticar-se na cara. O seus dedos tamborilavam no negro do volante.


Os dedos tamborilavam no negro do velho volante. O edifício principal estendia-se por 4 andares que bloqueavam o sol a nascer. Poucos carros se aventuravam ainda no parque de estacionamento da Universidade. O som que se ouvia era o de uma qualquer drogada da pop a reclamar contra o mundo injusto. "Coitadinhas das meninas" era o pensamento que saía dos negros cabelos escondidos por um gorro não menos negro. Fazia frio. Só o carro ligado impedia os vidros de se embaciarem a cada respiração. Mas não impedia o ar. O rádio velho do carro velho dava agora as notícias das sete. "Bom dia" o tanas pensou ele. Imaginava-se na voz daquela jornalista sulista daqui a umas horas. Sorriu. Quis mesmo rir. Mas rapidamente o recolheu. Havia algo a fazer. Com o velho motor a fazer abanar o seu assento carregou no pequeno isqueiro ao lado do cinzeiro. Esperou pacientemente enquanto este aquecia e quando saltou não perdeu tempo a agarrá-lo e estendendo a mão cravou o ferro em brasa nas costas da mão direita.


A mão esquerda segurava o isqueiro rectangular que largava um aroma de gasolina enquanto ia dançando uma chama no seu interior. Acendeu o cigarro e fechou o isqueiro contra a perna. Tinha-se encostado à berma para dar folga ao motor já demasiado quente e para encher os pulmões de fumo já demasiado vazios. Encostou o cigarro ao canto da boca e de uma caixa negra rectangular tirou uma guitarra igualmente negra que fez sentar no seu colo. Enquanto o cigarro lhe limpava os pulmões ele limpava a alma com uma canção num inglês imperceptível em que a palavra morte era uma constante. Ficou a dedilhar a guitarra enquanto o sol descia mais um pouco. O vento soprava satisfeito os cabelos negros dele que pareciam dançar ao som da música. Depois de refeito o peito guardou a guitarra de novo na caixa negra que cuidadosamente deitou no banco.


Tirou do banco cuidadosamente a caixa de guitarra. Tinha que ter cuidado para não fazer barulho. "Ainda não". A mão direita latejava incessantemente. Ainda assim ele carregava a grande mala com a mesma mão. "A dor é nossa amiga, mantém-nos alerta." Subiu os dois lanços de escadas que o separavam da porta e entrou pela grande porta da universidade que começava agora a acordar com alguns estudantes a passearem livros e bocejos. Ele olhava fixamente um ponto imaginário que marcava o horizonte. Passou por um par de corredores vazios e entrou na casa de banho do terceiro. Pousou a enorme caixa no chão e abrindo-a tirou uma barra metálica que usou para travar a porta. Com esta travada procurou na mala uma lata branca e retirando-lhe a tampa dirigiu-se para a parede mais vazia. A sua cabeça ainda cantava uma música calma, que não o acalmava mas mantinha o seu pensamento mais limpo e objectivo. Três espelhos erguiam-se contra a parede. Chegou-se junto da janela e começou a espalhar a tinta vermelha contra a parede branca. Com um sorriso nos lábios a tinta começou a formar palavras no branco.


Com um sorriso nos lábios largava palavras contra o vidro transparente. Repetia as de um artista qualquer enquanto sorria com a música a espalhar-se nas veias onde levavam a calma. A tinta vermelha espalhava-se agora no céu de fim de tarde.


Erguia-se também vermelha contra o horizonte a torre de uma estação de serviço, chamando para ela os que passavam no deserto. Ele foi cantando a metade de milha que o separava da torre. Encostou para dar de beber e beber. Foi fazendo bombear uns quantos galões para o depósito enquanto procurava no bolso uma nota que pagasse as bebidas. Seria bom ver alguém. Não que ele fosse um animal social. De todo. Mas neste sítio, nesta viagem seria bom ver alguém. Fechou o tanque e com as botas a baterem no alcatrão endurecido, dirigiu-se à pequena casinha apinhada de autocolantes.


Autocolantes apinhavam-se na parte interior da caixa de guitarra agora esventrada no chão. Um sorriso espalhava-se num deles mas não na cara dele. Agora estava concentrado a encher os bolsos com o conteúdo da grande mala preta. A lata de tinta tinha-se escostado a um canto e a universidade começava agora a acordar fazendo ouvir a sua respiração ofegante. Depois de vazia a longa caixa entrou para um cubículo e trancou a porta. Saltou por cima desta deixando lá dentro a caixa. Tirou a barra que empurrava a porta e atirou-a para dentro do cubículo ocupado. Saiu da casa de banho. A universidade tinha acordado com o seu atarefado rugido a percorrer os corredores. Ele estava parado junto à porta branca que sozinha se fechava.


Fechou a porta ao entrar e voltou a ouvir o sinal sonoro que avisava o dono da sua presença. Segurava na mão direita, que ostentava cicatrizes circulares, o dinheiro e a carta de condução que lhe permitiriam comprar qualquer coisa para afogar o peito.


A mão direita que segurava uma arma semi-automática ostentava uma cicatrizes circulares. A mão esquerda segurava um objecto parecido mas erguia-se paralela ao chão. O rugido fora substituido pelos gritos. Feridas circulares ocupavam pessoas e paredes, um vidro não tinha aguentado e espalhava-se agora no chão.


Por trás do balcão um vidro partido recortava o céu vermelho. Ele batia impacientemente no tampo do balcão enquanto olhava uma garrafa na estante em frente. A impaciência alargava-se agora às pernas e começou a percorrer os corredores da pequena e velha loja de conveniência.


Parou de percorrer os corredores quando regressou à porta de onde tinha saído há quinze minutos atrás. O chão enchia-se de gente, sangue, cápsulas de balas e restos de madeira lascada.


O chão enchia-se de excrementos de rato e cascalho que o vento tinha empurrado. Farto de esperar agarrou na garrafa que queria e saiu fechando a porta atrás de si.


Abriu a porta do cubículo com um pontapé e entrou lá para dentro, largou as armas no chão e pegou na caixa de guitarra com a mão esquerda.


Atirou a garrafa no banco de trás junto à caixa negra. Ligou o carro e espalhou pó arrancando para a estrada. Anoitecia mas não ligou as luzes. Levou o indicador e o dedo grande à têmpora para amenizar a dor de cabeça que começava a disparar com o anoitecer.


Na mão direita segurava ainda um revólver. As luzes azuis lambiam o vidro encostado à parede. Encostou o cano à têmpora. As costas da mão ainda latejavam. Ele sorriu.


A lua erguia-se já branca iluminando a estrada. Ele cantava. Os olhos fechados. O cabelo a ondular. A noite. A viagem.



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